(Escrevo depois da super terça-feira
nas primárias democratas americanas e quando Elizabeth Warren está prestes a
anunciar aos seus apoiantes a decisão (em que termos?) de abandonar a corrida à
nomeação democrata. Com o
ressurgimento de Biden nessa mesma terça-feira e a resiliência de Bernie
Sanders, não me atrevo a qualquer vaticínio. O que não impede de registar a
minha profunda deceção, até porque intuo que a empatia e bonomia de Biden não
chegarão para derrotar o boneco.)
Se fosse americano seria Democrata e Elizabeth Warren a minha candidata
à nomeação. Não teria dúvidas de fazer campanha ativa. Acho que a senadora de
Massachussets é conceptualmente melhor preparada para responder à minha própria
interpretação das grandes questões da sociedade americana, agravadas pela ação do
que Sanders considera ser e justamente o Presidente mais perigoso da história dos
EUA. A imagem gerada nas primárias de que Warren tinha um plano para toda a série
de problemas (link para um interessante artigo do Vox sobre essa questão) foi
multiplicada até à exaustão, mas interrogo-me hoje se foi favorável à sua
mensagem. O que eu sei é que ela foi pioneira em trazer as questões da
desigualdade para o debate político e das suas ligações com o estado deplorável
da saúde para os mais desfavorecidos da sociedade americana e com a intensificação
da morbilidade em grupos sociais específicos. E isso marca o meu
posicionamento.
Face ao desenvolvimento das primárias, embora ache que só uma presença
efetiva em território americano nos ajudaria a compreender o fenómeno, que para
nós é inequivocamente estranho, tenho de confessar a mais profunda deceção pela
ausência de resultados de aceitação do projeto Warren. E não imaginaria a força
e resiliência de Bernie Sanders. Começo a compreender que o discurso de Warren
não é suficientemente populista (à esquerda) para os tempos de hoje e que Sanders
se movimenta melhor nesse campo. Os dados estão lançados e a desistência de Warren,
por um lado, e dos outros candidatos moderados, por outro, coloca o embate
Sanders-Biden no centro da nomeação.
Como é usual nestes processos, à medida que as primárias atingem um
limiar expressivo, começa naturalmente a pensar-se no adversário das eleições
gerais e as opções de escolha começam a integrar a avaliação de quem terá mais capacidade
para vencer Trump.
Não sei francamente que poção terá Biden tomado para ressurgir tão viçoso
e carismático após a super-terça feira. Sempre me pareceu que Biden era
demasiadamente mais do mesmo para poder derrotar Trump e que, a esta distância,
invocar a proximidade a Obama é pouco para mandar Trump de volta para os seus
negócios e reality shows. A nomeação
de Bernie Sanders marcaria a rotura com o status
quo e traria ao socialismo (social-democracia) americana um outro fôlego. Mas
do outro lado não está um candidato típico ou normal. O novo normal Republicano
é afinal tão atípico que só com grande esforço se conseguem identificar as raízes
republicanas que associamos a outras personalidades da história política americana.
E, nestes momentos, está escrito que entre os americanos que votam Democratas
começa naturalmente a instalar-se a dúvida existencial que outras eleições bem
identificaram: se Biden ganhar a nomeação será que todos os votantes derrotados
de Sanders serão atingidos pela luz da unidade, sendo também acompanhados pela
base de apoio (mais pequena do que se pensava) de Warren? E se pelo contrário a
vitória de Sanders ocorrer, o eleitorado moderado de Biden e dos que abandonaram
a corrida unir-se-ão em torno da candidatura de Bernie, bem como os meios empresariais
afetos aos Democratas? Foi assim quando Hillary conquistou a nomeação e viu-se
o resultado, uma parte do eleitorado de Bernie não terá votado.
É óbvio que um mandato de Trump deu para desvirginar os ingénuos e
confirmar a sua base de apoio de deserdados da globalização, de oportunistas da
plutocracia e da atração pelo poder. Será que as tais dúvidas existenciais irão
colocar-se de outro modo e menos propensas à divisão entre os Democratas? Tenho
sérias dúvidas. Quanto mais penso nesta questão mais fico preso à ideia de que
os Democratas correm o sério risco de perderem de novo por se distanciarem
pouco do “mais do mesmo” e do politicamente correto dos corredores de
Washington. Perder com Biden ou perder com Bernie é, de acordo com o objetivo último
de derrubar o boneco, a mesma deceção. Mas pelo menos com uma eventual derrota
de Bernie isso equivaleria a um outro teste, o da diferença, e não a confirmação
do “mais do mesmo”. Clarificaria as coisas. Por isso votaria Bernie, a não ser
que as sondagens oferecessem a conclusão de que Biden ganharia a eleição. Mas
talvez tivesse que ir votar nessa interrogação.
Será que foi a misogenia profundamente enraizada na sociedade
americana que explica a sua fraca prestação em termos de geração de votos? Dupla
deceção.
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