(Já vimos de tudo nesta pandemia vivida a partir de cá. Já
pressentimos que urbanos em desespero procuravam oportunisticamente o para eles
esquecido interior em busca de isolamento, precipitando aliás, em alguns casos,
a disseminação territorial indesejada. Mas há também a reinvenção do urbano, forçada é certo, e não sabemos se portadora
de consequências mais duradouras ou se condenada a regressar à inércia de antes.)
A crise de
confinamento, contenção e paragem de uma grande parte da atividade económica
gerada pelo Coronavírus tem-nos trazido uma espécie de contrafactual de ilusão.
Por razões trágicas e à medida que todos procuramos gerir o melhor possível os medos
e interrogações, vamo-nos apercebendo de como poderia ser o padrão ambiental
das nossas vidas, acaso o modelo produtivo fosse outro e sobretudo se a
intensidade de utilização dos recursos físicos e naturais fosse também outro.
Mas é uma pura ilusão, a perspetiva de um passado ao qual só uma tragédia de
grandes proporções nos poderia reconduzir. O mundo vai ter enormes perdas de
vidas humanas, é certo e muitas das famílias por esse mundo e também por cá
conservarão a memória de um acontecimento que precipitou a partida de muitas
das nossas referências. Mas os restantes recursos das economias não vão ser
destruídos. As infraestruturas, os recursos físicos e naturais, o capital fixo
e de equipamento das empresas e das organizações em geral, as ideias e o
conhecimento, permanecerão. Parte do emprego será destruído, mas excetuando o
que permanecerá desencorajado para sempre, pode ser recuperado, se os estímulos
fiscais e monetários estiverem à altura da enormidade do problema.
Por conseguinte, é de
facto impressionante assistir ao recuo dos níveis de poluição do ar e de rios,
todos nos espantamos com a súbita transformação dos canais de Veneza e muitos
outros traços de mudança para o ambiente cristalino por agora nos alertam para
as delícias de um passado já relativamente longínquo. Mas a recuperação expansionista
trar-nos-á de novo os efeitos do congestionamento e não podemos ignorar que a
emergência climática resultou de uma enorme acumulação de efeitos no passado.
A resolução do
problema ambiental por via da paragem da atividade económica é, como todos
sabemos, uma ilusão passageira e não aponta para um novo rumo definitivo. Mas
relembra-nos que a solução está na reconsideração do modelo de crescimento para
recriar um novo modelo de desenvolvimento. Está na reorganização do trabalho
para nos devolver a ritmos de mobilidade mais saudável, contrariando os seus
opostos que também só ilusoriamente geram aumentos de eficiência e
produtividade. Está numa utilização mais inteligente das tecnologias de informação
e comunicação. Está na reorganização dos mercados e dos processos de produção
preparando-os para choques exógenos desta natureza. Está na adaptação dos
modelos de consumo e na antecipação de que o emprego não pode continuar a ser
assegurado apenas por atividades ou produções não neutrais do ponto de vista
das emissões de carbono.
Mas também a organização
territorial e o modo como exercemos o nosso direito à liberdade de movimentação
no território têm sido por maus e bons motivos impactados pela atual crise.
Tivemos ecos nas últimas semanas de gente que redescobriu subitamente o interior
esquecido procurando nele refúgio para o isolamento, não sabemos ainda se acompanhados
de uma disseminação da infeção nesses territórios já de si vulneráveis. Lemos
comentários lúcidos e sábios de gente local que denunciou essa descoberta de
última hora. Sei por experiência e saber próprios que uma segunda residência é
sempre um equívoco do ponto de vista da pertença a esses territórios, por muita
saudade que já tenha da minha ampla janela para Santa Tecla em Seixas-Caminha e
esteja roído de tristeza por não partilhar este ano o florescimento das
aleluias (e Seixas não é decididamente interior).
Mas assistimos a redescobertas
do urbano sem o abandonar. Por todo o espaço europeu e mundial há gente que passou
a ouvir os pássaros que não ouvia. Não estou nesse grupo. Melros, rolas e
outros pássaros (até de vez em quando um pica-pau) cruzam cânticos com o
grasnar das gaivotas e já povoavam as manhãs soalheiras nesta zona de Vila Nova
de Gaia. Mas há outros efeitos. De repente as ruas adquirem um outro
significado vivencial e talvez a nossa perspetiva e valoração do espaço público
mudem quando regressemos aos padrões habituais de densidade e mobilidade.
É claro que nem todos
terão a experiência do povoado de Fornelos de Montes em Pontevedra que na noite de
20 de março tiveram a experiência da visita de um lobo que se passeava pelo
povoado, talvez perturbado pela estranha ausência dos humanos, ou talvez com
fome (link aqui). Neste caso, o lobo regressou e como diz o arquiteto
paisagista francês Nicolas Gilsoul (link aqui) se a energia elétrica estivesse
cortada de noite outras surpresas haveria. No caso dos pássaros, eles estavam
lá, alguns de nós não os ouviam ou pressentiam. Já em 2013, o marxista David
Harvey sublinhava que “é hora de adaptar
o ambiente urbano ao tipo de gente que queremos ser” (link aqui).
Onde quero chegar com
estas informações mais impressivas do que sistemáticas? Há um espaço de
oportunidade à nossa espera para a reinvenção natural das Cidades. A emergência
climática já nos tinha sugerido essa possibilidade. A tragédia viral reforçará
essa sugestão.
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