domingo, 8 de março de 2020

DE NOVO A QUESTÃO DAS “DUAS CIÊNCIAS”



(Na página 4 do Expresso, corpo principal, encontrei uma notícia deveras impressiva e que me faz regressar ao tema das “duas ciências” que foi neste espaço objeto de um post há alguns dias. Terá uma equipa da Universidade Nova de Lisboa feito uma descoberta disruptiva do ponto de vista da celeridade com que a desejada neutralidade carbónica poderá ser alcançada?)

A história das “duas ciências” tem sido recorrente nas minhas reflexões já desde algum tempo. A entrevista ao Público da Professora Maria Manuel Mota ao Público 2 de há dias ressuscitou o tema. Por um lado, a ciência que é feita em Portugal para o mundo e a ciência que aspira entre portas a um processo mais intenso de transferência de conhecimento e de maior interação com as empresas ou com os sistemas públicos.

Uns dias depois de ter publicado esse post, tive uma curiosa conversa com alguém associado à Universidade, que por razões profissionais não devo divulgar, o qual se mostrava bastante crítico sobre o estado da ciência na União Europeia e o tão badalado Carlos Moedas não saía lá muito bem nessa fotografia. Dizia o meu interlocutor que, à boleia do argumento de que a ciência se faz para o mundo, o sistema científico europeu caminhava para a irrelevância, face aos movimentos observados na ciência asiática e americana. Segundo o meu interlocutor, um indicador dessa irrelevância tendencial está no volume de patentes registadas e que se mantêm vivas mas que às quais a valorização económica não atribui qualquer importância, condenando-as a um retorno nulo. Ou seja, a ciência europeia situar-se-ia bastante à margem dos processos de valorização económica do conhecimento, apesar do esforço de geração de patentes.

Esta abordagem pareceu-me curiosa, pois existe, regra geral, a (falsa) convicção de que quando um sistema científico e tecnológica se apresenta com um cardápio robusto de patentes isso significará que a vertente transferência de conhecimento predomina sobre a ciência não orientada em função da valorização económica do conhecimento. De facto, um amontoado inerte de patentes não significa rigorosamente nada e se não houver interesse económico na sua mobilização até pode dizer-se que essas patentes estão a penalizar a progressão do conhecimento. Talvez regresse a uma nova conversa com o meu interlocutor sobre o tema.
A notícia do Expresso informa-nos que uma equipa da UNL descobriu que uma bactéria (Desulfovibrio vulgaris) que se encontra facilmente nos solos, ambientes marinhos e mesmo na flora intestinal e que tem uma presença relevante na absorção de dióxido de carbono (CO2), tendo até a capacidade de o transformar em combustível químico com propriedades similares ao hidrogénio.

A notícia pareceu-me à medida das minhas reflexões. Estamos perante investigação científica que de acordo com a informação que pude recolher aporta dois possíveis rumos de transferência de conhecimento: por um lado, a formação de um novo combustível, que na palavra das investigadoras é de mais fácil transporte e armazenamento do que o hidrogénio e nem é explosivo nem tóxico; por outro lado, um contributo que pode ser inestimável para uma maior celeridade da neutralidade carbónica, já que a bactéria tem esse poder estranho de captação de CO2.

Da ideia à sua valorização económica decorrerá um longo calvário, para o qual regra geral as políticas públicas não estão preparadas pois não reúnem recursos bastantes e permanentes para acompanhar o seu desenvolvimento ao longo de toda a cadeia de inovação. O que temos aqui? Indiscutivelmente ciência para a transferência de conhecimento, o que por si só não significa que alcance o seu desiderato final. E transferência de conhecimento que me parece não estar destinada a morrer inerte numa patente a quem ninguém está interessado em proporcionar valor. Mas antes algo que se articula com os desafios societais do nosso tempo. Mas isso infelizmente não nos assegura que a dimensão do país e a vocação europeia sejam seguros suficientes para o seu êxito.

A sua existência já era acusada no EUREK ALERT (link aqui).

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