(Vamos tentar neste contexto difícil manter a sanidade
mental e por isso tentar encontrar, embora também não obsessivamente, temas que
estejam para lá da crise tremenda que vivemos. Para hoje e por agora apenas algumas reflexões sobre questões induzidas
pela crise mas que suscitam preocupações sobre as quais deveríamos
atempadamente dedicar mais atenção.)
Pressionados e
atordoados por este pesadelo que nos caiu em cima, não demos a devida atenção a
um incidente que não o foi, porque dada a gravidade do momento, alguém decidiu
e bem não fazer desse incidente um problema. Que poderia ter sido. A que é que
me refiro?
Parece indiscutível
que as regiões autónomas dos Açores e da Madeira se precipitaram no anúncio da
decisão de encerramento de fronteiras e aeroportos a não residentes sem
autorização prévia do Governo da República, sobrepondo-se a uma competência que
é exclusiva deste último. Provavelmente Vasco Cordeiro e Miguel Albuquerque
tiveram pelo menos a cortesia de comunicar ao Primeiro-Ministro que iriam
decidir em conformidade. Bem sei que a insularidade pode ampliar a perceção das
ameaças e o síndroma das ameaças que chegam de fora. Mas, em meu entender, a
autonomia regional não ganha reconhecimento, antes pelo contrário, com
atropelos de competências que não lhe pertencem e o Governo central já tem
problemas suficientes para o apoquentar nesta altura.
António Costa e o
ministro da Administração Interna foram comedidos no modo como sublinharam que
se tratava de uma competência do Governo da República, marcando a diferença
face a um exercício precipitado da autonomia regional. Sou dos primeiros a reconhecer
a valia da autonomia regional e como ela nos deve orgulhar, sobretudo como,
apesar das críticas recorrentes daqueles que desdenham das autonomias regional
e local e de algumas outras cristalizações de poder, elas têm funcionado como
instrumentos de desenvolvimento em condições difíceis de geolocalização e de
mobilidade.
Mais do que estes
exercícios de saltar a vedação do que constitucionalmente lhes é atribuído, os
governos regionais têm à sua frente um vastíssimo campo de intervenção no modo
coordenado e eficaz como deverão controlar a sequência epidemiológica dos casos
que vierem a manifestar-se, aproveitando a pequena dimensão do seu território.
Qualquer tentativa de forçar a barra do seu posicionamento face ao Governo da
República constituirá no momento presente algo que os Portugueses em geral não
perdoarão, com reflexos na nossa solidariedade futura.
Já nos bastam as
vicissitudes políticas naturais dos processos de descentralização e
regionalização em Portugal para termos agora que aguentar com estas
imprevidências de lideranças impacientes.
A outra questão induzida
pela crise atual é a perceção dos cidadãos europeus quanto à descoordenação evidente
que se instalou na União Europeia com esta matéria. Essa perceção é alimentada
por duas evidências, mas haverá seguramente mais a emergir nos próximos tempos.
Por um lado, a desculpa formal e institucional de que as competências em
matéria de saúde pertencem aos Estados-membros é daqueles argumentos que, à
medida que chegam cá fora, desacreditam cada vez mais o já por si desacreditado
projeto europeu. Não se vislumbra qualquer ideia imaginativa em termos por
exemplo de constituição de reservas estratégicas de materiais e medicamentos ou
de outras matérias que podem ser cruciais para ajudar países mais necessitados.
Por outro lado, a resposta macroeconómica à clara evidência de que a Europa e o
Mundo irão entrar proximamente em recessão é desconcertantemente frouxa e não
haveria melhor símbolo dessas curtas vistas que a presença insípida do Comissário
Letão para agravar essa perceção, e anunciando a decisão. Os diretórios
europeus não terão aprendido rigorosamente nada com a trágica gestão da crise
das dívidas soberanas e temo o pior em termos de frouxidão na gestão dos tempos
de recessão que estão à porta.
Já basta a severidade
do próprio problema de saúde pública que está pela nossa frente. Ignorar a
interação perigosa que pode estabelecer-se entre os picos do fenómeno em vários
países (que não serão sincronizados) e o agravamento das condições económicas pode
ter efeitos devastadores se a Comissão Europeia e o Conselho Europeu não
estiverem à altura das circunstâncias. Ir de novo ao bolo das políticas de
coesão para injetar dinheiro na economia sob a desculpa de que o orçamento
comunitário ainda não existe abre campo a toda a série de desvinculações de uma
coordenação europeia. Se a União não se afirma em momentos como o atual mais
vale a pena começar a pensar numa outra prospetiva.
Nota
final (à
margem dos dois temas de hoje)
Quem diria que o
convidado por Marcelo Rebelo de Sousa para o último discurso do 10 de junho (João
Miguel Tavares) assinaria uma das mais violentas crónicas, diria de suspeição, focadas
no Presidente. Admitir que a política pode ser discutida como se evoluísse numa
torre de marfim imune aos contextos externos conduz de facto a erros tremendos.
Não está em causa a leviandade com que o cronista aborda alguns assuntos. Mas o
que interessa realçar é o facto do tema Marcelo já não ser tabu.
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