(Não imaginaria que o blogue se transformasse num diário
contido da quarentena, mas é assim. É difícil
encontrar hoje temas que nos proporcionem alguma distância face às razões do
nosso próprio isolamento, mas há um que corresponde aos meus interesses
passados, a globalização e um excelente número da FOREIGN AFFAIRS ajuda e muito
a essa reflexão)
As curvas do número
de infetados e de suspeitos registados continuam a crescer em desaceleração, ou
seja a crescerem a uma taxa que não é crescente, o que, sem por si só nos
revelarem quanto tempo demorará a crescerem a taxas cada vez mais baixas,
oferecem alguma esperança de que as medidas de contenção e confinamento mais
musculadas estarão a começar a produzir efeitos. Mas toda a atenção é pouca,
pois não conhecemos bem os vários tempos de manifestação associados ao contágio.
Ontem, aproveitando a
maior calma do isolamento consegui finalmente ver em casa os PARASITAS de Joon-ho
Bong, que excedeu as minhas expectativas. É de facto uma metáfora poderosa sobre
as desigualdades urbanas, as mesmas que condicionarão de modo irredutível a
resposta à ameaça que pesa sobre todos os nós e sobretudo o “aftermath”
quando os tempos da reconstrução (sempre em guarda) chegarem e interpelarem a
nossa capacidade de intervenção. Não posso deixar de reparar que, em pouco mais
de 10 anos, teremos dois “aftermath” de grande exigência, com grandes
consequências para as minhas áreas disciplinares.
Em busca de temas que
tornem estas reflexões menos obsessivas e tanto quanto o possível próximas dos
tempos de reflexão anteriores, constato desde logo que a esmagadora maioria do
que vai sendo escrito pelo mundo tem ligações diretas ou indiretas à tragédia
sanitária. Regresso hoje ao tema da globalização, pois é tema recorrente neste
blogue e suscita toda uma revisão profunda de interpretação, pensando sobretudo
no já mencionado “aftermath”.
A FOREIGN AFFAIRS
dedica-lhe um número excelente com diversificadas interpretações sobre a
reconsideração da globalização em termos de pandemia, particularmente o artigo de Henry Farrel a Abraham Newman (link aqui). A importância do tema nos
EUA compreende-se pois a economia e sociedade americanas viram nos tempos mais
recentes dois fenómenos atravessarem-se nos rumos da globalização, produzindo
sérios rombos numa embarcação que estava menos governada do que pensávamos.
Primeiro, o populismo repentista de Trump e agora a pandemia são rombos sérios.
Apetece dizer que não havia necessidade de apanhar com tais embates para
perceber que o barco precisava de melhores manobradores. E, para complicar tudo
isto, a pandemia também é geopolítica e da mais avançada. O facto da China ter
sido a primeira nação a poder respirar com algum alívio coloca-a no centro da liderança
para a abordagem à pandemia. Não foi por acaso que uma Itália à beira do
colapso só na China encontrou ecos dos seus pungentes e desesperados pedidos de
ajuda. E não sabemos ainda se a desastrada abordagem de Trump ao problema
colocará ou não a sociedade americana à mercê de outras ajudas incómodas. Lembremos
que a sociedade americana (com análise específica neste blogue) viveu nos
últimos o que o Nobel Angus Deaton (em colaboração com Anne Case) classificou
de “epidemia do desespero” (link aqui). O número de mortes na sociedade americana por
motivo de excesso de drogas (700.000 mortes desde 2000), doenças do fígado
determinadas pelo alcoolismo galopante e pelo suicídio aumentou
significativamente, a ponto da esperança de vida à nascença dos americanos ter descido
de modo relevante entre 2015 e 2017. Quer isto significar que o COVID-19
apanhará os EUA no âmbito de uma trajetória de sociedade doente, não sendo
preciso adivinhar para compreender a estupidez da basófia de Trump.
Uma das grandes
insuficiências do modo como o barco da globalização foi manobrado reside no
simples facto de se ter escamoteado uma ideia básica: globalização acrescida
significa especialização levada à exaustão (e consequente diversificação
geográfica dos diferentes pontos da cadeia de valor) e isso é a outra face da
moeda da interdependência e das fragilidades e vulnerabilidades. É um jogo
estranho. É um jogo de interdependências que funciona e cria valor enquanto os
agentes que nele intervêm não introduzirem areias na engrenagem e qualquer
fator exógeno não vier perturbar a situação. O reconhecimento do valor da
interdependência é crucial para que as vulnerabilidades não se manifestem.
Ora a pandemia vem
destruir a convicção dos países no valor da interdependência. As cadeias de
produção estão no domínio dos produtos mais urgentes para debelar a situação
sanitária, tais como máscaras e outros materiais de proteção, reagentes,
ventiladores, sei lá que mais, destruídas ou ameaçadas. A China ainda vai
demorar alguns dias a retomar a produção. E para prejuízo de soluções mais
consistentes, a corrida à vacina está a gerar o sentimento contrário da
interdependência. Trump, por exemplo, quis ganhar a dianteira comprando para
uso exclusivo dos EUA e, algo compreensivelmente, alguns países determinaram a
proibição de exportação de máscaras. Noutro plano da especialização produtiva,
o último mês registou uma queda de 50% na produção de computadores portáteis
(modelo laptops).
O risco de evolução
para uma situação tendencialmente de procura da autossuficiência, exportando
apenas excedentes, é elevado. É neste contexto que se antevê com facilidade o
erro histórico da União Europeia em não querer ou não poder (pela infernização
da sua própria questão orçamental) assumir uma posição mais global e concertada
na abordagem à pandemia.
Branko Milanovic na
mesma FOREIGN AFFAIRS (link aqui) alerta-nos para um estranho paradoxo, ao qual
acrescento uma nota pessoal. Por um lado, dependemos todos de profissionais
altamente especializados, com os heróis do tempo de hoje à cabeça, os profissionais
de saúde. Por outro, numa interpretação perigosa das condições de resposta ao
contágio possível, poderia dizer-se que quanto mais autossuficiente (ou seja
menos especializado) mais vantagens haverá na perspetiva de evitar a infeção. Mas
se pensarmos que o fundamental é impedir que se observe o colapso social lá regressaremos
à especialização e à interdependência. E essa parece-me ser a metáfora dos dias
de hoje: a autossuficiência ajuda no confinamento e na distância social, mas evitar
que as sociedades colapsem coloca-nos de novo na rota da interdependência e do
valor do trabalho de cada um.
Por mais evolução
tecnológica que nos antecipe o bem-estar material as sociedades globais não
deixam por isso de apresentar vulnerabilidades e fragilidades. Quiseram
pintar-nos o quadro da globalização invencível e incontornável. Uma grande
parte desses arautos estão hoje do lado oposto a essas convicções, promovendo o
populismo nacionalista. É a própria narrativa da globalização que tem de mudar.
Não há globalização sem fragilidades ou vulnerabilidades a choques exógenos ou
naturais. O que significa que a podemos e devemos gerir e regular melhor.
Nota final: a imagem
que abre este post, mostrando uma operação de desinfeção na Bolsa de
Nova Iorque, é bem simbólica dos tempos em que estamos mergulhados e das
ameaças que pesam sobre a globalização.
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