domingo, 22 de março de 2020

FRAGILIDADES DA GLOBALIZAÇÃO



(Não imaginaria que o blogue se transformasse num diário contido da quarentena, mas é assim. É difícil encontrar hoje temas que nos proporcionem alguma distância face às razões do nosso próprio isolamento, mas há um que corresponde aos meus interesses passados, a globalização e um excelente número da FOREIGN AFFAIRS ajuda e muito a essa reflexão)

As curvas do número de infetados e de suspeitos registados continuam a crescer em desaceleração, ou seja a crescerem a uma taxa que não é crescente, o que, sem por si só nos revelarem quanto tempo demorará a crescerem a taxas cada vez mais baixas, oferecem alguma esperança de que as medidas de contenção e confinamento mais musculadas estarão a começar a produzir efeitos. Mas toda a atenção é pouca, pois não conhecemos bem os vários tempos de manifestação associados ao contágio.


Ontem, aproveitando a maior calma do isolamento consegui finalmente ver em casa os PARASITAS de Joon-ho Bong, que excedeu as minhas expectativas. É de facto uma metáfora poderosa sobre as desigualdades urbanas, as mesmas que condicionarão de modo irredutível a resposta à ameaça que pesa sobre todos os nós e sobretudo o “aftermath” quando os tempos da reconstrução (sempre em guarda) chegarem e interpelarem a nossa capacidade de intervenção. Não posso deixar de reparar que, em pouco mais de 10 anos, teremos dois “aftermath” de grande exigência, com grandes consequências para as minhas áreas disciplinares.

Em busca de temas que tornem estas reflexões menos obsessivas e tanto quanto o possível próximas dos tempos de reflexão anteriores, constato desde logo que a esmagadora maioria do que vai sendo escrito pelo mundo tem ligações diretas ou indiretas à tragédia sanitária. Regresso hoje ao tema da globalização, pois é tema recorrente neste blogue e suscita toda uma revisão profunda de interpretação, pensando sobretudo no já mencionado “aftermath”.

A FOREIGN AFFAIRS dedica-lhe um número excelente com diversificadas interpretações sobre a reconsideração da globalização em termos de pandemia, particularmente o artigo de Henry Farrel a Abraham Newman (link aqui). A importância do tema nos EUA compreende-se pois a economia e sociedade americanas viram nos tempos mais recentes dois fenómenos atravessarem-se nos rumos da globalização, produzindo sérios rombos numa embarcação que estava menos governada do que pensávamos. Primeiro, o populismo repentista de Trump e agora a pandemia são rombos sérios. Apetece dizer que não havia necessidade de apanhar com tais embates para perceber que o barco precisava de melhores manobradores. E, para complicar tudo isto, a pandemia também é geopolítica e da mais avançada. O facto da China ter sido a primeira nação a poder respirar com algum alívio coloca-a no centro da liderança para a abordagem à pandemia. Não foi por acaso que uma Itália à beira do colapso só na China encontrou ecos dos seus pungentes e desesperados pedidos de ajuda. E não sabemos ainda se a desastrada abordagem de Trump ao problema colocará ou não a sociedade americana à mercê de outras ajudas incómodas. Lembremos que a sociedade americana (com análise específica neste blogue) viveu nos últimos o que o Nobel Angus Deaton (em colaboração com Anne Case) classificou de “epidemia do desespero” (link aqui). O número de mortes na sociedade americana por motivo de excesso de drogas (700.000 mortes desde 2000), doenças do fígado determinadas pelo alcoolismo galopante e pelo suicídio aumentou significativamente, a ponto da esperança de vida à nascença dos americanos ter descido de modo relevante entre 2015 e 2017. Quer isto significar que o COVID-19 apanhará os EUA no âmbito de uma trajetória de sociedade doente, não sendo preciso adivinhar para compreender a estupidez da basófia de Trump.

Uma das grandes insuficiências do modo como o barco da globalização foi manobrado reside no simples facto de se ter escamoteado uma ideia básica: globalização acrescida significa especialização levada à exaustão (e consequente diversificação geográfica dos diferentes pontos da cadeia de valor) e isso é a outra face da moeda da interdependência e das fragilidades e vulnerabilidades. É um jogo estranho. É um jogo de interdependências que funciona e cria valor enquanto os agentes que nele intervêm não introduzirem areias na engrenagem e qualquer fator exógeno não vier perturbar a situação. O reconhecimento do valor da interdependência é crucial para que as vulnerabilidades não se manifestem.

Ora a pandemia vem destruir a convicção dos países no valor da interdependência. As cadeias de produção estão no domínio dos produtos mais urgentes para debelar a situação sanitária, tais como máscaras e outros materiais de proteção, reagentes, ventiladores, sei lá que mais, destruídas ou ameaçadas. A China ainda vai demorar alguns dias a retomar a produção. E para prejuízo de soluções mais consistentes, a corrida à vacina está a gerar o sentimento contrário da interdependência. Trump, por exemplo, quis ganhar a dianteira comprando para uso exclusivo dos EUA e, algo compreensivelmente, alguns países determinaram a proibição de exportação de máscaras. Noutro plano da especialização produtiva, o último mês registou uma queda de 50% na produção de computadores portáteis (modelo laptops).

O risco de evolução para uma situação tendencialmente de procura da autossuficiência, exportando apenas excedentes, é elevado. É neste contexto que se antevê com facilidade o erro histórico da União Europeia em não querer ou não poder (pela infernização da sua própria questão orçamental) assumir uma posição mais global e concertada na abordagem à pandemia.

Branko Milanovic na mesma FOREIGN AFFAIRS (link aqui) alerta-nos para um estranho paradoxo, ao qual acrescento uma nota pessoal. Por um lado, dependemos todos de profissionais altamente especializados, com os heróis do tempo de hoje à cabeça, os profissionais de saúde. Por outro, numa interpretação perigosa das condições de resposta ao contágio possível, poderia dizer-se que quanto mais autossuficiente (ou seja menos especializado) mais vantagens haverá na perspetiva de evitar a infeção. Mas se pensarmos que o fundamental é impedir que se observe o colapso social lá regressaremos à especialização e à interdependência. E essa parece-me ser a metáfora dos dias de hoje: a autossuficiência ajuda no confinamento e na distância social, mas evitar que as sociedades colapsem coloca-nos de novo na rota da interdependência e do valor do trabalho de cada um.

Por mais evolução tecnológica que nos antecipe o bem-estar material as sociedades globais não deixam por isso de apresentar vulnerabilidades e fragilidades. Quiseram pintar-nos o quadro da globalização invencível e incontornável. Uma grande parte desses arautos estão hoje do lado oposto a essas convicções, promovendo o populismo nacionalista. É a própria narrativa da globalização que tem de mudar. Não há globalização sem fragilidades ou vulnerabilidades a choques exógenos ou naturais. O que significa que a podemos e devemos gerir e regular melhor.

Nota final: a imagem que abre este post, mostrando uma operação de desinfeção na Bolsa de Nova Iorque, é bem simbólica dos tempos em que estamos mergulhados e das ameaças que pesam sobre a globalização.

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