segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

O SURPREENDENTE ZELENSKY

(cartoon de Agustin Sciammarella, http://elpais.com)

Não vai terminar o mês de Fevereiro sem que aqui vos refira o nome de Volodymyr Zelensky, um presidente da República ucraniana que nasceu para a política de maneira estranha e até canhestra e se tem vindo a transformar, aos olhos de muitos observadores (o “inevitável” chama-lhe hoje “o novo herói da Europa” e cita alguns dos elogios que tem recebido de respeitáveis órgãos de comunicação internacionais), numa figura apreciada pela sua atuação patriótica, firme e corajosa no contexto da trágica situação que se vive no seu país. Claro que é talvez cedo para ilações finais, como também prematuramente lhe foi apontado o dedo por oportunismo populista; no entanto, e o que quer que venha a acontecer de seguida, o judeu Zelensky tem sido um farol de ânimo na estimulação da resistência do seu povo ao urso invasor.

A VERTIGEM DOS ACONTECIMENTOS

 

(Tal como noutros momentos da história, descritos por quem os viveu, mais distantemente ou em termos mais próximos, estamos a viver uma vertigem de acontecimentos, nunca ignorando a lentidão do tempo que parece não passar, sentida pelos Ucranianos que resistem à invasão russa e que vão compreendendo a violência que os cerca e ameaça. Por trágica ironia, ainda antes de não estar completamente encerrada uma pandemia que pareceu ter congelado as nossas relações, proximidades e modos de convivialidade, tudo se precipitou, com a confirmação dos piores cenários da mais rudimentar prospetiva e produzindo uma enorme aceleração da vida das instituições. E por estranho que pareça, uma instituição como a União Europeia a quem atribuíamos um irritante e calculista imobilismo, também ela e os seus estados-membros mais sonantes não ficaram à margem de tal vertigem…).

O dia de ontem culminou uma vertigem de acontecimentos que estão para além do ziguezaguear em que o conflito mergulhou, com a absurda e paradoxal aceleração de algumas dimensões da invasão enquanto que se desenhava a primeira e ainda tímida iniciativa de negociação entre as partes. Vejamos, por exemplo, a sequência de decisões históricas em que o governo alemão do SPD, Verdes e Liberais, liderado por Scholz, se envolveu, num teatro de operações político que a novel coligação certamente não esperaria ter de cavalgar, por mais bem informado que estivesse pelos seus serviços de inteligência. O governo alemão rompeu com a confirmação do Nordstream 2, decisão que vai revolucionar toda a política energética alemã, reduzindo fortemente a sua dependência energética em relação à oferta de gás russo, cuja emergência ficará na história como um dos legados mais controversos da chanceler Merkel. E como a presença dos Verdes no governo ditará a continuidade da defesa do não nuclear, a não confirmação do Nordstream 2, pese embora todos os custos de transição que irá determinar, vai acabar por ter um peso absoluto na política energética europeia e na diversificação das suas fontes energéticas. Em paralelo, nunca a opinião pública alemã se tinha insurgido com tanta veemência sobre as habilidades do senhor Schroeder, um dos tais que envergonha a social-democracia, que o levaram à administração da GazProm e como nos diz Wolfgang Münchau na sua mais recente crónica (link aqui) questionando inclusivamente o legado de Merkel nesta matéria. Como é óbvio, a transição energética a que a Alemanha vai estar submetida enfrentará dificuldades  bem maiores do que esta simples decisão, corajosa é um facto, de descontinuar o compromisso do gasoduto.

Depois, o facto da Alemanha ter concordado com o agravamento das sanções por intermédio da desconexão do SWIFT de alguns bancos alemães e ter aderido também às sanções sobre o banco central russo.

E não menos importante a decisão de permitir que o financiamento europeu possa ser aplicado na compra de armas de defesa para os Ucranianos e aderir ao aumento do peso das despesas militares no PIB para 2% solicitado pela NATO. É um verdadeiro turbilhão de decisões, numa espantosa aceleração do tempo político. E não foi também por acaso que, apoiada neste novo enquadramento, Ursula von der Leyen se saiu com a abertura de uma possível adesão da Ucrânia à União Europeia que não deve ser confundida com a adesão à NATO, também reinvindicada pela Ucrânia. Certamente que Macron se mexeu e quis assumir um voluntarista protagonismo em todo este processo, mas será por acaso que o imobilismo da Comissão Europeia se desfez quando a Alemanha mudou de padrão de decisões? Não é certamente por acaso. Mas tudo isto é um jogo de posições que se inscreve num xadrez de grande indeterminação e com players que podem (Putin e o seu Ministro da Defesa Sergey Shoygu) a todo o momento subverter o tabuleiro, inventar novas peças e viciar as regras do jogo. É difícil saber se a abertura da adesão da Ucrânia à União Europeia é algo pensado no âmbito de uma trajetória a trilhar no futuro próximo ou e é, pelo contrário, apenas mais uma peça para convencer Putin do erro dos seus cálculos.

Curiosamente, Münchau conclui a sua crónica disparando esta sibilina afirmação de que muita coisa mudou esta semana na Alemanha menos ainda a sua conceção mercantilista das relações internacionais e a sua obsessão pelos excedentes comerciais, sabemos que largamente à custa dos seus simétricos em muitas economias europeias, com destaque para as economias do sul. O problema é que para esse tipo de decisões não há nenhuma drama Ucraniano a pressionar.

NA MELANCOLIA DE MAIS DUAS MORTES

Soube há momentos do falecimento prematuro (51 anos) de Fernando Costa Andrade, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e ex-deputado do Partido Socialista mas sobretudo uma figura intelectual de significativa relevância que passou a correr pela nossa vida pública, alguém a quem os mistérios da existência humana não deram a oportunidade de poder contribuir mais diferenciadamente para o coletivo nacional.

 

Nesta mesma tarde, apercebi-me da ocorrida há dias morte de Mário de Oliveira, o ex-Padre da Lixa e para mim o inesquecível professor de Religião e Moral que me calhou em sorte no ano letivo de 1964/65 no Liceu Normal de D. Manuel II (hoje Rodrigues de Freitas). Aquelas aulas descomplexadas e de autêntica abertura de cabeças que nos proporcionou foram um dos aspetos mais marcantes da minha passagem pelo ensino liceal, tal como a disponibilização da sua casa (ali à Carvalhosa) a todos os jovens dos dois sexos que a quisessem frequentar foi um ato que nenhum dos contemplados poderá jamais esquecer. Depois disso, a vida correu, Mário contestou Fátima e renunciou à Igreja, fez obra diversa e acabou pobre mas feliz na sua determinação pelos princípios, afinal sempre largamente idênticos ao longo tempo, que o foram guiando até aos 84 anos.

 

Dois seres que aqui não podia deixar de homenagear à humilde maneira do que este blogue pode representar.


ELEMENTOS PARA UMA COMPREENSÃO DA SITUAÇÃO RUSSA

A vertiginosa depreciação do rublo tem sido um dos principais efeitos da justa e inédita escalada de medidas europeias e ocidentais contra o país (sendo a mais importante a remoção dos principais bancos russos do sistema de mensagens interbancárias SWIFT e o congelamento dos ativos do banco central da Rússia, assim limitando a capacidade do país aceder às suas reservas no exterior e promovendo o seu tendencial isolamento da economia global). Com efeito, a moeda russa estava hoje a ser negociada quase a 109 por dólar americano, tendo caído cerca de 36% no espaço de uma semana (mais 28,7 rublos por dólar) em notória comparação negativa relativamente a uma queda de apenas 7,8% ao longo do ano precedente. Sendo que a reação possível do banco central russo também já ocorreu por via de uma elevação da sua taxa de juro (de 9,5% para 20%) e de uma proibição de os estrangeiros venderem títulos localmente.

(elaboração própria a partir de https://oec.world)

(elaboração própria a partir de https://data.worldbank.org)


Não obstante, e decorrendo do atrás explicitado que a situação económica da Rússia irá sofrer visivelmente, com inevitáveis reflexos sobre o bem-estar do seu povo, o certo é também que os responsáveis russos se prepararam para tais efeitos ao longo de anos, o que os cinco gráficos anteriores ajudam a ilustrar: uma balança de transações correntes com excedentes recordes, uma diversificação estratégica dos parceiros comerciais (com especialíssimo enfoque nas relações com a China, sobretudo após o incidente da Crimeia em 2014) e um nível confortável de reservas totais acumuladas (com o adicional de uma dependência controlada no tocante às potências ocidentais). Dito isto, o que importa voltar a sublinhar é o momento histórico que está a ser vivido quanto aos termos nunca vistos como o Ocidente, e especialmente a União Europeia, está a reagir à provocação de Putin, quer pela coragem revelada em algumas decisões (com destaque para o caso da Alemanha, nos complexos casos do Nord Stream 2 e do SWIFT) quer pelo seu foco, alcance e rapidez. Já para não falar do determinante financiamento da compra e entrega de armas à Ucrânia, que muda de forma total a configuração até agora dita “pacífica” da União, e do modo como a solidariedade para com os refugiados tem vindo a estar unanimemente patente em todos os países que fazem parte do clube dos Vinte-e-Sete. Tudo a acompanhar a heroica e brava resistência dos ucranianos como pano de fundo absolutamente dominante.


(Luis Pérez Ortiz, “LPO”, https://www.elmundo.es)

domingo, 27 de fevereiro de 2022

OS OLIGARCAS

                                                                        (Gabriel Zucman)

(Enquanto as cidades ucranianas alvo da agressão russa resistem como podem e o número de população deslocada no país e fora dele se aproxima de muitos milhões, a comunidade internacional parece finalmente organizar-se numa plataforma transatlântica, com Estados Unidos e Canadá a cooperarem com a União Europeia e o Reino Unido, para refinar sanções e operar o que parece ser a medida mais radical ao alcance do ocidente, isolar a Rússia da economia global e morder calcanhares e pernas aos oligarcas mais próximos de Putin e da sua clique. Por estranho que pareça e pela trágica ironia de suportar o desplante de uma guerra para intervir numa realidade que as partes mais ocultas dos sistemas financeiros têm vindo a escamotear, falar-se-á abundantemente nos próximos dias de congelamentos de ativos e de tentativa de controlo de offshores. Claro que isso não deve fazer esquecer a ajuda humanitária e militar aos resistentes, criando condições possíveis para uma negociação diplomática um pouco mais equilibrada do que uma simples rendição…).

Sob os auspícios da Comissão Europeia, foi ontem publicado (26.02.2022) (link aqui) um comunicado conjunto envolvendo a Comissão Europeia, França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos, assumindo o compromisso de endurecimento de medidas contra a Rússia, que passam pelas seguintes ações:

  • Afastamento de um determinado conjunto de bancos russos do sistema SWIFT, desconectando-os do sistema financeiro mundial;
  • Imposição de medidas restritivas impedindo o Banco Central Russo de movimentar as suas reservas internacionais de maneira a mitigar o impacto das sanções;
  • Atuação sobre as condições e privilégios de concessão de cidadania a personalidades mais próximas das atividades de agressão do Governo Russo;
  • Lançamento de uma plataforma transatlântica destinada a identificar e congelar os ativos de determinados indivíduos e empresas russos.

Tudo parece inclinar-se para um grande consenso sobre a absoluta necessidade de isolar a economia russa e particularmente o grupo de principais oligarcas que se movimenta em torno de Putin. No fundo, embora que tenhamos de reconhecer que as oligarquias russas representam apenas uma situação muito mais agravada do que tem acontecido nas economias mais avançadas do mundo, a verdade é que a desproporção e desigualdade da riqueza na Rússia torna-a vulnerável a medidas de congelamento de ativo financeiros e outros bens.

O gráfico que abre este post, devido a um economista brilhante, Gabriel Zucman, a quem devemos a mais completa investigação sobre a riqueza desproporcionada das elites e das práticas para a camuflar e branquear, mostra como a Rússia se destaca em relação a outras economias de Leste. Mas, também na sequência de trabalhos de Zucman e da sua equipa, sabemos também que essa riqueza astronómica é essencialmente detida em offshores. Estima-se que os 0,01% russos mais ricos apropriem metade da riqueza russo e que o façam essencialmente em offshores e paraísos fiscais, com Chipre à cabeça (cerca de 20% da riqueza russa estará em offshores). Por isso, talvez haja condições para finalmente se olhar de maneira mais rigorosa para esta triste realidade do capitalismo financeiro dos nossos dias.

 

Do ponto de vista dos ativos financeiros, sabe-se também que, com a saída do Reino Unido da União Europeia, talvez seja em Londres que podemos perceber uma das grandes aplicações de riqueza da oligarquia russa, a ponto de muita gente falar do “Londonigredado”, tamanha é a concentração de despojos da riqueza russa por aquelas paragens. Ontem, foi também conhecido que os nacionais russos não poderão deter contas nos bancos britânicos acima das 50.000 libras, embora me pareça que nas condições de taxas de juto atuais não serão os depósitos bancários a materialização da fração mais importante da riqueza dos oligarcas. O imobiliário de luxo e outras formas de financiamento de atividades não transacionáveis no Reino Unido, incluindo o próprio futebol, estarão entre as principais aplicações.

Existe por conseguinte a expectativa de que finalmente algo seja feito em relação à chamada riqueza oculta e de que a desconexão forçada dos oligarcas russos do sistema financeiro internacional possa exercer algum elemento de pressão sobre o processo de decisão de Putin. Como o próprio Zucman o relembra com pertinência, essa vontade política implicará obviamente um outro olhar sobre desigualdade, corrupção e ocultação de riqueza (link aqui) que se observa também a ocidente.

Uma palavra final para registar que o ex-primeiro ministro francês François Fillon terá anunciado que se iria retirar da direção de duas empresas russas. Já quanto a Gerard Schroeder ainda não publicou nada de semelhante quanto ao seu posto no gigante do gás russo. O pragmatismo ocidental assumiu muitas vestes e algumas não é fácil despi-las.