quinta-feira, 24 de março de 2022

GLOBALIZAÇÃO EM EROSÃO ACELERADA?

 

                                                            (Uma questão de sinais ...)

(Não escondo que podemos ser seduzidos pelo catastrofismo de gente como Larry Fink, gestor do maior fundo de investimento do mundo, o Black Rock, que afirmava por estes dias que a invasão russa da Ucrânia acaba com a globalização. Mas, por uma longa habituação a resistir aos cantos do catastrofismo, isso será bom para personagens como o comentador de serviço da SIC José Gomes Ferreira, que me irrita solenemente, percorro normalmente outros caminhos e outras influências. É o caso de economistas como Adam S. Posen, presidente do think-tank do Peterson Institute for International Relations. A gravidade da prospetiva não deixa de estar lá. Mas assenta numa outra racionalidade de fundamentação e isso agrada-me. Afinal, não o esqueço, a globalização foi o meu último objeto de culto e de estudo em plenas funções universitárias. O bichinho instalou-se e não rejeito alimentá-lo …)

Recordo-me que foi numa sessão pública em Serralves de umas Jornadas empresariais organizadas pelo Professor Valente de Oliveira em 2015, iniciativa conjunta AEP-Fundação de Serralves, que deixei os primeiros alertas de que os trends da globalização poderiam a estar dar os primeiros sinais de estancamento. Essa revelação não foi para mim apenas o resultado de uma curiosidade estatística. O conhecidíssimo rácio “(Exportações mundiais + Importações mundiais) / PIB mundial” tinha entrado em estagnação. Em tempo devido, estivera atento ao que Dani Rodrik provocatoriamente nos incutiu com o seu trilema da globalização, tantas vezes aqui mencionado neste blogue. Na sua configuração determinada pela reglobalização dos anos 80 e 90, a globalização era incapaz simultaneamente de acelerar a integração económica dos países, respeitar o primado do Estado Nação e integrar no seu seio o processo de barganha social que é próprio das sociedades democráticas. 

Em 2016, na Ordem dos Engenheiros em Lisboa, a convite da APDA – Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas e do Amigo Sérgio Lopes, voltei à carga. Com alguns slides que mostravam a importância daquele sinal, na altura ainda com o contraponto da subida dos fluxos de serviços na economia mundial.

Mais para a transição entre as décadas de 2010 e de 2020, dois fenómenos de natureza diversa, o populismo político com as suas extensões de mau gosto para o populismo económico (com Trump à cabeça e a comandar as tropas) e os seus reflexos na conflitualidade USA-China e, nos nossos dias, a eclosão pandémica com todas as disrupções fatais para os caminhos da globalização vieram agudizar as maleitas da globalização. Já a elas me referi em vários posts. Podemos passar à frente. Ora, é com este estado de saúde deplorável que poderá dizer-se que a invasão da Rússia vem dar o golpe de misericórdia em algo em estado avançado de erosão.

O artigo de Posen na Foreign Affairs (link aqui) traz alguma clareza a esta questão. Analisa os efeitos da invasão da Ucrânia de uma perspetiva global e sobretudo prospetiva. Não se trata apenas de identificar os efeitos de destruição de sistema produtivo ucraniano que a invasão provoca (apesar de em algumas das reportagens que passam nas nossas televisões podermos ver tratores ainda a trabalhar no campo dos cereais, mas talvez mais para sobrevivência), mas de antecipar o que está a acontecer à economia mundial no seu todo, incluindo os efeitos de sanções e das réplicas e adaptações às mesmas.

Uma das notas mais subtis do economista americano é a distinção que ele estabelece do ponto de vista da dimensão financeira e da dimensão económica da globalização. Assim, por agora, enquanto a China permanecer com as cautelas conhecidas de não intervir explicitamente no conflito apoiando a Rússia e com isso suscitar a extensão das sanções ocidentais, o sistema financeiro mundial terá alterações mas não decisivas, dado o sobretudo o grande acordo a ocidente em matéria de sanções. As alterações esperadas são-nos lembradas pela história económica mundial deste tipo de conflitos. Mais tarde ou mais cedo, as taxas de câmbio dos países que mantêm as suas moedas alinhadas com moedas de referência “tenderão a seguir as alianças militares”. Estar com os EUA e ocidente em geral ou estar com a Rússia terá consequências nos alinhamentos monetários, embora possa admitir-se que a Rússia terá pouco para oferecer, dado os sucessivos trambolhões do rublo. Até agora, o congelamento das reservas oficiais em moeda estrangeira do Banco Central russo teve o pleno acordo dos principais países ocidentais. Houve de facto a questão recente de saber se a Rússia conseguiu pagar o empréstimo que se vencia na semana passada com rublos ou dólares. Já ouvi e li as duas versões e continuo um pouco às escuras nesta matéria, especialmente para compreender qual foi efetivamente o papel desempenhado na operação. Imagino que as instituições financeiras internacionais terão privilegiado receber o capital devido, interrompendo de certo modo a não convertibilidade do rublo. Terá sido assim?

Pode assim dizer-se que, do ponto de vista da globalização financeira, a economia mundial parece não tremer por agora. Aguardam-se os próximos “defaults potenciais” da Rússia em abril para compreender se esse vaticínio está certo.

Mas o que parece, de vez, radicalmente alterado é o padrão de interrrelacionamento económico internacional em que a globalização assenta e foi construída. As cadeias de valor globais nunca mais serão as mesmas. A ideia de redução dos níveis de vulnerabilidade tenderá sub-repticiamente a generalizar pelo globo fora redundâncias de especialização, erradicando o princípio de levar a eficiência à procura de fontes únicas de abastecimento. Projetos nacionais de rendibilidade discutível serão reavaliados à luz dos novos princípios e, com essa inflexão, dificilmente o fluxo de talentos pelo mundo ficará intacto. Admito, por isso, que as firmas multinacionais, como o refere Posen, entrem neste jogo e criem elas próprias redundâncias de especialização em diferentes geografias.

Do ponto de vista da prospetiva geoestratégica, os blocos económicos em torno da influência dos EUA e da China tenderão a consolidar-se. Abre-se a interrogação de saber se a União Europeia será ou não capaz de aproveitar a deixa e se afirmar do ponto de vista da política e do poder económico em termos compatíveis com a sua dimensão agregada e, por agora, ainda não coletiva. Tudo indica que o relançamento da procura interna na Alemanha, via investimento de defesa, energético e inovação tecnológica, poderá de uma vez por todas erradicar a irritante procura de excedentes comerciais à moda mercantilista e, com isso, beneficiar os países em regra deficitários no comércio com a Alemanha. E que o euro possa fortalecer-se. Por outro lado e por ironia da imprevisibilidade da guerra, as tiradas desbocadas de Trump sobre a “onshorização” da economia americana serão concretizadas em muitos países neste novo contexto. O investimento direto estrangeiro regressará às tais redundâncias de especialização e não alimentará fontes únicas e mais eficientes de produção para a escala mundial.

Estima-se que, se a teoria estiver certa (em tempo de revisão de tudo também elas estarão sob stresse de evidência), o crescimento económico e o desenvolvimento tecnológico mundial irão entrar em desaceleração franca. Direi que a espionagem tecnológica irá também ela recrudescer. Neste novo contexto, os sinais que se ergueram em torno da chinesa HUAWEI serão uma brincadeira ao pé do que poderá passar-se.

Claro que em tudo isto, como regra geral acontece, “quem se lixa é o mexilhão”. E, na sua globalidade, os países em desenvolvimento e mais pobres perderão e muito, a começar por questões básicas de sobrevivência alimentar. A disrupção da oferta de cereais e derivados e consequente escala de preços representará uma ameaça de vida. Imagino que muitos desses países relembrem o passado e o caótico mas vivo movimento do Terceiro Mundo, que não regressa. Já não falo no desastre em que a transição energética poderá transformar-se, com toda a série de recuos, miragens, falsas esperanças e atalhos que a irão perturbar. O que me parece é que se o Ocidente não integrar na equação global a questão dos países mais pobres, dará à China de mão beijada uma influência ainda mais generalizada e marcante.

Teremos assim provavelmente várias globalizações económicas parcelares em formação, cabendo ao Ocidente, por agora unido, tratar convenientemente da sua e integrar nessa nova ordem das coisas a ajuda aos mais pobres.

As mudanças antecipáveis são de tal envergadura que apetece perguntar se o malvado autocrata pensou nisto tudo quando deu a ordem de invasão. O argumento de base seria linear: em autocracia prolonga-se, no tempo, o fim, enquanto que nas democracias todo o tempo de mudança entra em aceleração.

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