(Um mês de agressão bárbara e guerra na Ucrânia e começa a compreender-se melhor o que está em jogo na espantosa resistência dos Ucranianos, bem como os sucessivos planos de contingência ou de improviso que estarão nas mentes de Putin e da sua clique cleptocrática. Cheguei a pensar que estaríamos perante uma desigual luta entre dois tempos: o dos Ucranianos e do horizonte temporal possível para a sua resistência, mais rápido e inexorável e o da dissolução do regime de Putin, mais lento e interrogado, determinado por uma combinação de causas internas comuns em autoritarismos desta natureza e de causas externas, geradas pelas sanções do Ocidente sobre a Rússia. Com os elementos que se vão conhecendo, os tempos da complexidade impõem-se a essa luta desigual. Há mais elementos em jogo e a equação torna-se indeterminada. Vou tentar explicá-lo o melhor possível neste post.)
Li por repetidas vezes testemunhos de vários quadrantes que identificam o essencial do que está em causa no conflito russo-ucraniano: a dilacerada oposição entre a defesa da liberdade e o mais sinistro autoritarismo. Sim, em parte também é essa a questão que a coragem e bravura dos Ucranianos nos atiram às nossas consciências, todos os dias. Mas os últimos dias mostram-nos que algo de mais sinistro está por detrás da bárbara agressão de Putin à Ucrânia e, por tabela, na resposta dos Ucranianos.
É cada vez mais claro que a agressão de Putin é determinada por um conceito mais vasto do que o do autoritarismo cleptocrático. Vários analistas, caso de Steven Erlanger no New York Times International da passada sexta-feira 18 de março, falam de etnonacionalismo: “uma ideia de nacionalidade e identidade baseada na linguagem, na cultura e no sangue”, algo bastante enraizado no pensamento russo desde os Czares e que Putin assume deliberadamente. Se esta conceção estiver correta, as atrocidades que Putin está a concretizar apontam para a consolidação de uma nova dimensão territorial para esse etnonacionalismo. Para os que se inspiram nesse conceito, a Ucrânia não existe. Imaginem entretanto o profundo choque sentido pelas tropas russas que sentem no terreno e na pele a negação dessa ideia de que a Ucrânia não existe. A Ucrânia e a Bielorússia integrariam esse novo referencial etno-nacionalista, questão que encontra do lado ocidental e da resistência ucraniana (pelo menos a partir do discurso de Zelensky) algo de muito distinto, a defesa dos valores da multiculturalidade, da responsabilidade cívica, do Estado de Direito, dos direitos humanos e das minorias.
A ideia da Rússia europeia nunca terá saído da imaginação ocidental. Antes pelo contrário, o que parece germinar é a ideia de uma Eurásia, em permanente conflito com o Ocidente, entendido como decadente.
Por aqui também se compreende a extrema dificuldade que paira sobre as negociações para uma possível paz que salve a face de quem resiste e de quem invadiu.
Noutro plano, a ofensiva russa, depois de se tornar evidente que a resistência ucraniana terá ultrapassado todas as antecipações que a clique militar terá realizado para Putin e de compreender que a ocupação total do território ucraniano será também inviável, parece apostada em destruir o mais possível o território que resiste. Mariupol é talvez o melhor exemplo dessa abordagem, segundo os relatos que vai sendo possível obter a partir do terreno. De início, este plano B (Thomas Friedman avança no New York Times com mais planos contingenciais, ainda mais aterradores) visaria com a destruição massiva e indiscriminada quebrar a resistência ucraniana e forçar a rendição incondicional. Mas também aqui a situação começa a emergir mais complexa. O xadrez joga-se em vários tabuleiros. Tudo indica que Putin pretenda provocar o êxodo de refugiados mais brutal de sempre após a 2ª Guerra Mundial. E o objetivo será confrontar os países da NATO mais próximos com uma onda de descontrolo no acolhimento e com isso inverter as opiniões públicas de tais países relativamente à Ucrânia de Zelensky. Em meu entender, o modo como uns meses atrás a Bielorússia jogou com a massa de refugiados em relação à Polónia e à Lituânia, transformando-os na arma de chantagem mais vil, anunciou esse pérfido comportamento.
Este foco no etnonacionalismo de Putin adensa-se de negro com o seu discurso da purificação que proferiu na encenada grande manifestação para comemorar a anexação da Crimeia. E, absurdo dos absurdos, Putin que manipula a velha alma da resistência russa, mais concretamente a memória dos cerca de 27 milhões de russos mortos pelos nazis, identificando a agressão à Ucrânia como um simples ato de desnazificação, proferiu talvez o seu discurso mais nazi que se lhe conhece. A ideia da purificação o que é senão a reminiscência e invocação mais direta do nazismo de Hitler?
A fraude comunicacional de Putin consiste em estender a todos os Ucranianos a efetiva presença entre os resistentes que lutam encarniçadamente contra as tropas russas de grupos de extrema-direita nazi, dos quais o chamado batalhão Azov é a expressão mais conhecida. A revolução de 2014 na Ucrânia favoreceu essa infiltração e até os “nazis portugueses” (Mário Machado) obtiveram da justiça portuguesa uma estranha e incompreensível autorização para rumar até à Ucrânia para combater as tropas russas. Mas convém não ignorar que Zelensky é judeu e que antes da invasão o seu governo publicou uma série de leis para combater e punir o antissemitismo.
Finalmente, esta trágica combinação de eventos e barbárie completa-se com a anunciada saída da Rússia dos seus talentos, da sua população jovem mais qualificada, sobretudo residente em Moscovo. Na entrevista ao podcast de Ezra Klein a grande jornalista Masha Gessen já tinha referido que tinha evidência entre os seus amigos e conhecidos mais próximos de que os passaportes estavam preparados para zarpar em direção a destinos possíveis. Agora, a jornalista da New Yorker publica na revista um esclarecedor artigo, no qual segue essa pista. O aeroporto internacional de Vnukovo em Moscovo, ponto de partida para as viagens de fim de semana para os jovens moscovitas mais abastados e talentosos, está a transformar-se numa corrente migratória com algum significado, para vários destinos, com Istanbul à cabeça entre os preferidos.
Esta é uma outra fonte de decomposição do regime de Putin. Não faço ideia se no último discurso de Putin, este êxodo é também entendido pelo Ivan o Terrível dos nossos tempos como um exemplo de purificação da alma russa. Mas é uma decomposição lenta e que a curto prazo serve os objetivos de Putin, reforçar o peso da população russa que não tem outras fontes de informação para lá da televisão oficial. Alguém escreveu que a Rússia se reerguerá um dia, mas para isso terá de sucumbir estrondosamente. Mas essa queda será sempre mais lenta do que o tempo da resistência ucraniana e do que o tempo da capacidade ocidental para manter viva a solidariedade e acolhimento dos refugiados.
Sucedem-se os sinais de que a proeminência comunicacional do assunto Ucrânia está a diminuir. As críticas ao poder efetivo das sanções começam a ouvir-se com mais força (ver artigo de Ricardo Cabral no Público). E também os alertas de que a solidariedade no acolhimento de ucranianos irá transformar-se naquilo que os ocidentais poderão prometer a Zelensky (veja-se neste sentido a crueza do comentário de Wolfgang Münchau).
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