domingo, 20 de março de 2022

O REGRESSO DA MACRO (II)

 

(in Domash e Summers, https://www.hks.harvard.edu/centers/mrcbg/news-events/domash_summers)

(Continuemos pelos caminhos da macroeconomia revisitada, num momento em que as interrogações e disrupções pandémicas foram agravadas pelas consequências da invasão russa da Ucrânia e pela sombria nova ordem económica internacional que se desenha nos nossos horizontes. O último post centrou-se no fogo que tem sido disparado sobre o FED USA, a partir do momento em que os fantasmas da inflação ressurgiram e todos sabemos como a imprensa económica, sempre sensível a quem grita mais alto, rejubila com os cenários catastrofistas em termos de aumento de preços. É tempo de completar a abordagem ao debate, pois ficaram algumas dimensões por tratar.)

Na crónica de ontem, ficou bem explícito como os bancos centrais se agarraram há já algumas décadas, antes e depois da mudança de século, ao fetiche da meta de inflação a 2%. Esse fetiche resistiu com pertinácia ao longo período de taxas de juro nulas ou negativas e à incapacidade da política monetária colocar a variação de preços em torno da sua meta. Há quem diga e quem o diz é hábil na interpretação que o fascínio por manter contra todas as contrariedades a meta de inflação estável para a política monetária se deve a um contexto de fazer valer a chamada “ilusão monetária”. Ou seja, um período de acalmia de expectativas e variação de preços em torno de uma meta estável é a melhor forma de raciocinarmos em termos de grandezas nominais e não ter de pensar em termos de poder de compra dos nossos rendimentos. Mas na última crónica, mostrámos que a manutenção dessa meta em tempos de taxas de juro nulas ou negativas é também a consequência de ter caído o tabu do endividamento público e dos seus efeitos nefastos sobre o crescimento económico. Uma matemática simples do tipo “d=-b + (r-g)d” em que d representa a taxa de variação do rácio “Dívida/PIB”, b o saldo orçamental primário, r a taxa de juro real e g a taxa de crescimento económico permite demonstrar que quando r<g é possível estabilizar o rácio “Dívida/PIB” ainda que mantendo défices públicos.

A política fiscal teve assim vasto campo de manobra para compensar a impotência da política monetária. A gestão macroeconómica da pandemia não fez mais do que prolongar a passadeira vermelha para a política fiscal. Curiosamente, foi o grande estímulo fiscal de Biden que suscitou os primeiros alertas contra os riscos inflacionistas de tal política.

Mas podemos perguntar: serão assim os bancos centrais tão incompetentes que se deixaram seduzir pela hipótese de aumentos temporários de preços, não compreendendo que algo de mais estrutural poderia estar a acontecer, exigindo atuação mais consistente quanto ao controlo da inflação?

Não de maneira alguma, pois a situação era de molde a proporcionar o adiamento da decisão de começar a travar as ameaças inflacionistas.

Primeiro, como também mostrámos na última crónica, registava-se uma clara diferença entre as variações de preços a curto prazo e as expectativas de variação de preços a mais longo prazo. As taxas de juro de títulos a 5 e 10 anos que descontam no valor de mercado a inflação prevista para esse horizonte não davam sinais de grandes alterações. A ideia da inflação temporária, antes do efeito Ucrânia, parecia ser validada pelo racional de mercado de títulos a prazo. Os bancos centrais não estavam de facto sozinhos.

Segundo e para mim claramente mais importante, em ambiente de taxas de juro nulas ou negativas, há um princípio de política monetária que considero inabalável: é sempre mais grave restringir precocemente a economia do que adiar ligeiramente o seu arrefecimento. A explicação é simples: atacar uma recessão em ambiente de taxas de juro nulas ou negativas é sempre mais difícil do que conter pressões inflacionistas.

Porém, dou de barato que o efeito Ucrânia e previsível alteração da ordem económica internacional traz para as decisões dos bancos centrais um contexto totalmente diferente. Todos os fatores de disrupção pandémica correm o sério risco de se transformar em elementos de caráter estrutural com os cenários económicos de guerra que se perfilam no horizonte.

E, de certo modo como Lawrence Summers o tem vindo a sublinhar, a questão passa rapidamente de ser uma questão teórica com reflexos profundamente práticos para se transformar numa questão de interpretação dos sinais que a economia americana está a fornecer nesse novo contexto. Ou seja, a tensão inflacionária que o contexto externo faz abater sobre os fatores económicos internos do estímulo de Biden, com taxa de desemprego muito baixa em torno dos 3,5% e os salários a crescerem recentemente a ritmos de 6%, começa a tornar não plausível que, face a riscos de inflação salários-preços, seja realista continuar a pensar num referencial de 2% para a inflação.

Ou seja, regressa de certo modo a visão mais tradicional da política monetária anti-inflacionista: reduzir a taxa real de juro para fazer descer a inflação e assim ter que aumentar bastante mais as taxas de juro nominais acima da inflação para conseguir esse objetivo.

E como em tantas outras situações os macroeconomistas encontram sempre evidência para fazer valer os seus raciocínios. É um princípio saudável, mas como diz o outro há evidências e evidências.

A posição de Lawrence Summers é sobretudo crítica da aparente convicção do FED USA de que a economia americana possa controlar a corrente pressão inflacionária no quadro de uma “aterragem suave” (soft landing). Por outras palavras, o FED USA parece acreditar que será possível manter por algum tempo a inflação substancialmente acima da meta dos 2%. Nas palavras de Summers, parece ter terminado o velho princípio de que a política monetária combate a inflação antes dela se materializar. As palavras de Summers ainda são mais irónicas: “em vez de retirar as bebidas antes da festa estar ao rubro parece que se adota o princípio de que as bebidas fazem as pessoas felizes”.

Se quiséssemos ser algo maquiavélicos diríamos que Summers nunca engoliu com facilidade a sua não escolha para o FED quando a escolha recaiu em Janet Yellen. Mas um economista da craveira de Summers, mesmo que não insensível a esse tipo de contrariedades, continua a ter um forte peso e influência na opinião económica e por isso não pode ser ignorado.

E lá vem a tal evidência. Em trabalho conjunto com Alex Domash (também Harvard University), que se tem notabilizado mais recentemente com valiosa investigação sobre o estado de pressão em que o mercado de trabalho americano se movimenta, Summers e Domash demonstram que, muito frequentemente, períodos como o atual, de inflação crescente e desemprego muito baixo, tendem a ser rapidamente sucedidos por períodos recessivos. Se é verdade que é um pouco inexplicável que, ainda recentemente, o FED estivesse a comprar no mercado títulos suportados por hipotecas de residências quando os preços da habitação estavam a subir em torno dos 20%, o que aponta para um erro e um atraso de correção de medidas, a evidência trazida por Domash e Summers não significa deterministicamente que vá registar-se a curto prazo uma recessão. É uma evidência a que corresponde uma regularidade. Por isso, se bem que não possa e não deva ser ignorada, parece-me que será mais avisado ponderar antes a convergência de forças inflacionárias que a crise da Ucrânia e o ambiente de guerra trouxeram ao ambiente pandémico.

Por isso, parece que tudo residirá numa questão de aeronáutica. Conseguirá o FED uma aterragem suave da economia americana sem implicar um aumento significativo de desemprego causado pelo aumento necessário da taxa de juro real?

Temos falado muito do FED e pouco do BCE. Não é por acaso. Regra geral a alteração de posicionamento dos bancos centrais começa nos EUA e propaga-se depois ao mundo. Nesta matéria, o BCE estava preparado para iniciar a alteração de posicionamento, anunciando o fim dos estímulos de compra de ativos. O problema é que toda a gente estima efeitos pesados na Europa. Será que o BCE estará recetivo ao reconhecimento de assimetrias poderosas de efeitos desse fim de apoio da política monetária aos países mais endividados com a simultânea observação dos efeitos de preços causados pela guerra? António Nogueira Leite sugere essa possibilidade no Expresso Economia deste fim de semana, mas sinceramente não acredito que o BCE disponha de tal margem de flexibilidade na mediano dos seus governadores. Pelo que ressalta dessas páginas do Expresso, a generalidade dos bancos portugueses estaria já a antecipar a fim da compra de ativos pelo BCE. Já a simultânea verificação dos efeitos da guerra será mais dificilmente acomodável. A política fiscal continuará a dar ordens. O problema é que com um fim generalizado da compra de ativos os mais endividados como nós não terão a mesma passadeira vermelha para a política fiscal. Terão uma passadeira mais estreita e com degraus a vencer.

Moral da história: não faço a ideia se António Costa já terá ou não convidado os novos (se for esse o caso) Ministros das Finanças e da Economia. Oxalá que já o tenha feito, pois as matérias sobre as quais terão de debruçar-se serão complexas e de tirar o sono por longo tempo. Uma boa aterragem para eles.

Sem comentários:

Enviar um comentário