quarta-feira, 2 de março de 2022

NOVOS RUMOS PARA A GLOBALIZAÇÃO?


(Imagem do porto de Hamburgo escolhida pelo Brave New Europe para ilustrar o artigo de Branko Milanovic)


(Temos assistido nos últimos anos a uma declarada sequência de acontecimentos que podem ser considerados rombos consideráveis no porta aviões da globalização. O recrudescimento do populismo sobretudo nas suas variantes de nacionalismo económico agressivo, as disrupções das cadeias de valor globais que a pandemia veio claramente agravar colocando poderosas indeterminações à possibilidade de regresso a uma certa normalidade e, por estes dias, os cenários de guerra que de repente se perfilaram no mundo são de facto rombos de grande magnitude. Fazer recuar ou avançar a globalização não é em si bom ou mau, tudo depende da forma como a interpretamos nas suas diferentes e complexas realizações e resultados. O que a história nos ensina é o contrário da globalização, ou seja, um mundo fraturado e repleto de nacionalismos económicos agressivos é regra geral sinonimo de guerra. A intervenção no comércio internacional por motivos de geopolítica é tipicamente ou a eles conduz um ambiente pró-guerra. O que esteve sempre em causa nunca foi, felizmente, o regresso às trevas em matéria de comércio internacional, mas sim o confronto entre duas versões – a visão reformista da globalização e o seu aprofundamento a todo o preço …).

 

Regresso ao tema neste blogue, inspirado sobretudo por um pequeno artigo de Branko Milanovic, uma visita regular neste espaço, que se interroga no Brave New Europe (https://braveneweurope.com/branko-milanovic-the-beginning-of-a-new-globalisation) sobre o eventual início de uma nova globalização.

 

O que me parece importante destacar neste momento é que tudo se passa no interior do que parece ser, sempre com aquela indeterminação de vivermos no presente acontecimentos que podem ser marcos indeléveis da transformação económica do mundo, uma profunda recomposição do capitalismo. O que demonstra a sua incomensurável flexibilidade de mudança e adaptação a diferentes contextos históricos.

 

E comecemos, antes de mergulhar no artigo de Milanovic, numa recordatória importante sobre a globalização, que nos ajudará a dar conta das mudanças que estão em curso de concretização.

 

Numa conceção relativamente restrita de globalização, entendida essencialmente como o resultado de três grandes movimentos, de mercadorias e serviços (a globalização económica), de capitais (a globalização financeira) e de pessoas (a globalização humana e do trabalho), até há bem pouco tempo a globalização das pessoas era o parente pobre do processo global. Na verdade, nos tempos mais recentes, a circulação de pessoas nunca chegou a atingir a expressão dos números de outras épocas. E também nos últimos tempos a globalização económica e a financeira encarniçaram-se numa luta sobre quem comandaria o processo global. A desregulamentação financeira que tragicamente varreu os mercados e os quadros jurídicos de regulação no movimento liberal dos anos 80 e 90 conduziu a globalização financeira a resultados e dinâmica nunca antes vistos. 

 

Como sabemos e depois de algumas ameaças, a crise financeira geradora da Grande Recessão de 2007-2008 rompeu com o princípio do primado da globalização financeira e várias dúvidas emergiram sobre os riscos de deixar andar nesta matéria. Várias iniciativas foram tomadas para repor o bom senso e corrigir desvarios e surgiram no ar várias ideias como, por exemplo, a de uma taxa mínima para todas as transações financeiras e ainda mais recentemente o acordo no quadro do G20 para a imposição de uma taxa de imposto comum sobre as empresas multinacionais.

 

A pandemia, por sua vez, trouxe graves disrupções à globalização económica, agravando o sinal que vinha sendo dado pela queda/estagnação do indicador “(Exportações mundiais + Importações mundiais)/PIB mundial. A pandemia trouxe roturas importantes ao cerne da economia mundial, as cadeias de valor globais, e graves interrupções e situações de escassez à circulação de produtos intermédios por todo o mundo (com os chips e semicondutores como a expressão mais conhecida. Claro que por via da influência do investimento direto estrangeiro, movimentos de mercadorias e serviços e de capitais estão relacionados. Os movimentos estritamente financeiros são a ovelha ranhosa de todo este processo, pois estamos perante movimentos de capitais, largamente abutres, sem quaisquer relações estáveis com o investimento produtivo.

 

Por conseguinte, nos tempos mais recentes a espantosa evolução tecnológica que reduziu custos de transporte e circulação de mercadorias, precipitou os movimentos de capital numa vertigem de movimentos automáticos e globalizou a oferta de serviços parece ter encontrado travões de diferentes naturezas. O progresso tecnológico não desapareceu, antes pelo contrário, E, no entanto, a globalização claudicou. Tudo no âmbito de um processo de recomposição do capitalismo cujos contornos finais ainda desconhecemos.

 

É aqui que o artigo de Milanovic entronca. O economista sérvio parte do contexto anterior ao eclodir da pandemia. Nesse contexto, avulta o que ele designa de assimetria da globalização. O capital circulava, apesar das evidências atrás registadas, mais facilmente do que o trabalho. A tecnologia bancária e de comunicações associava-se à ideia de que os investidores poderiam investir em destinos longínquos, sem que isso significasse maior risco, passível de aumentar os prémios de risco dos investimentos. 

 

Na sua análise, um pouco simplista demais para meu gosto, estaremos pós-pandemia a assistir ainda a uma globalização assimétrica mas de sentido oposto. Graças à emergência que alguns consideram irreversível (continuo mais suspeitoso do que essa corrente) do teletrabalho, a globalização do trabalho terá entrado em aceleração. Esse movimento de reforço não se processaria apenas do ponto de vista da clássica relação casa-trabalho, mas também do ponto de vista da globalização dos locais de trabalho na economia mundial, prosseguindo a competitividade dos locais com talento e remuneração mais baixa do trabalho. 

 

Quanto aos constrangimentos dos movimentos de capital estaríamos segundo Milanovic num agravamento de restrições impostas pela crise financeira de 2007-2008. Pelos tempos que correm, as sanções económicas agudizam essa tendência, com congelamento de várias famílias de ativos e a tentativa de desconexão da economia mundial de uma economia como a Rússia, com consequências óbvias sobre as economias de proximidade à Federação Russa. Não vou entrar, até porque não tenho informação credível para isso, na discussão em curso se o ocidente sobrevalorizou ou não o efeito das sanções sobre a oligarquia russa mais próxima de Putin, na medida em que pode ter sobrevalorizado a influência possível desses oligarcas sobre as decisões de Putin. Mas independentemente dessa possível sobrevalorização, o que podemos concluir é que por muito tempo a globalização financeira não será mais a mesma. Afinal, como o refere Milanovic, na perversão e diversidade dos comportamentos a sancionar o rol é imenso: guerras civis, tráfego de droga, regulamentação bancária, diferentes sistemas políticos, violações de direitos humanos, genocídios e outros. Ou seja, exatamente o contrário do mundo plano que a globalização financeira sempre procurou. E muito provavelmente um sistema financeiro mundial bastante mais multipolar do que o atual, que apontava para as grandes praças financeiras, irá emergir. 

Sem comentários:

Enviar um comentário