(Enquanto a Ucrânia resiste heroicamente, as forças russas parecem enredadas nas contradições da ofensiva de Putin e a situação humanitária se degrada para lá do aceitável face ao nosso modelo civilizacional, a oeste dá a impressão que se perdeu o sentido das proporções. Assim, enquanto o pragmatismo dos interesses associados a dependências energéticas tem justificado das contradições observadas em matéria de sanções, assiste-se à proliferação de cancelamentos culturais e demonizações em torno de símbolos culturais russos e de expoentes da criação artística. Se as primeiras podem justificar-se enquanto se preparam uma transição e alternativas, as segundas afiguram-se tão pequeninas e mesquinhas, sobretudo quando comparadas com a bravura e resistência dos que sofrem, os Ucranianos.
Nos últimos dias, ficou claro que entre a decisão de Biden de embargar a entrada de petróleo russo nos portos americanos e o não acompanhamento pela União Europeia dessa decisão se abria uma das primeiras fendas a oeste nas sanções ao regime de Putin. O que estava já anunciado quando o gás e o petróleo ficaram de fora das sanções decretadas pela União Europeia. A fenda não se tinha manifestado apenas porque a administração americana não decidira o embargo. Mas a pressão política interna sobre Biden para o fazer tornou o embargo em algo de inevitável, até porque se trata de uma medida com mais impacto mediático do que real, dada a relativamente baixa importância das importações americanas de petróleo russo. Não é bonito, mas há uma justificação. Embora esta provenha do resultado de uma péssima política europeia em termos de diversificação de origens e fontes energéticas, haverá pelo menos oportunidade para corrigir o que nunca deveria ter assumido proporções tão gravosas em termos de segurança energética.
Mas as contradições da resposta ocidental são bem mais absurdas quando se começa a entrar na demonização da cultura russa e se vai assistindo ao crescendo da estupidez de uma série de cancelamentos.
Compreendo que em relação a artistas no ativo que se declararam amigos ou próximos de Putin ou que, pelo menos, não foram claros no seu posicionamento de repúdio relativamente às façanhas do autocrata, exista um movimento de rejeição e de algum castigo. Foi este o caso do maestro russo Valery Gergiev que se recusou a condenar o regime de Putin e também o da diva Anna Netrebko, embora esta tenha assumido uma posição mais dúbia do que a do maestro. Com o afastamento de Gergiev posso eu bem, mas aguentar a ostracização da voz de Netrebko custa e muito. Mas estamos no domínio do compreensível.
Agora que se cancelem concertos com obras de Tchaikovsky (link aqui), no caso de Cardiff a Abertura de 1812 em que se celebra a resistência russa às tropas de Napoleão, ou conferências em que a obra de Dostoievsky seria discutida já remete para o domínio da loucura e da falta de senso. Tudo isto ao mesmo tempo, outra notícia do Guardian (link aqui), em que se percebe que o mercado da arte tem falhas e incongruências e que não será fácil barrar a entrada aos oligarcas russos.
Fico sempre arrepiado quando se procura reescrever a história, como se ela pudesse ser profética, fazendo-a saltar de contextos separados por séculos. Como se Tchaikovsky ou Dostoievsky quando compuseram ou escreveram tivessem que antecipar que um dia a Rússia seria governada por um alucinado, apostado ele também em reescrever a história.
Poupem-me.
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