quarta-feira, 16 de março de 2022

ESTANQUE TEM-NOS NO SÍTIO!

 



(Por razões que só o próprio poderá explicar com clareza, Boaventura Sousa Santos tem estado na boca do furacão em termos de comentário político sobre este presente dos últimos meses. Foi assim com a destruição do acordo parlamentar à esquerda que gerou as últimas eleições, com o relativo insucesso do Bloco de Esquerda nessas eleições e, mais recentemente em torno dos comentários à invasão russa da Ucrânia. Enquanto pensador da complexidade da qual BSS se reivindica, é natural que o posicionamento do Emérito Diretor do CES de Coimbra suscite em gente como eu, com as limitações e formação que fui acumulando, reações matizadas e não necessariamente convergentes seja na rejeição ou aceitação. Mas a escala da minha matizada reação não pode ser obviamente a mesma quando analiso os seus contributos para a complexidade, as suas interpretações dos erros da esquerda portuguesa ou o seu posicionamento relativamente à invasão russa da Ucrânia e aos desvarios do seu autocrata imperial …)

Ao contrário de algumas das correntes da sociologia portuguesa, estou a pensar sobretudo nas correntes mais tradicionais que se formaram com o legado inestimável de Adérito Sedas Nunes e que pontuaram os tempos iniciais do Instituto de Ciências Sociais (ICS) de Lisboa (António Barreto, Maria Filomena Mónica, Vasco Pulido Valente, entre outros), a investigação de BSS nunca me suscitou reações particularmente epidérmicas. Outro caminho foi traçado, por exemplo, pela sociologia do Porto que começou na Faculdade de Economia do Porto (sem esquecer a obra do Professor Teixeira Fernandes na Faculdade de Letras do Porto) com os trabalhos do meu Amigo José Madureira Pinto, que prosseguiu um caminho próprio, depois continuado com a sua ligação ao curso de Sociologia da Faculdade de Letras do Porto. Essa corrente nunca foi uma apreciadora da investigação de BSS, mas seguiu sobretudo a influência de Bourdieu e assim escapou ao tipo de reação dos tradicionalistas do ICS. A ascensão do Emérito Diretor do CES foi rápida e impressionante, sobretudo pelo apoio em termos de financiamento internacional que os seus programas de investigação começaram a receber das autoridades europeias. E como é típico dos processos de reprodução do conhecimento, a relevância do financiamento começou a permitir aumentos consideráveis das massas críticas das equipas de investigação. Perante a impotência dos mais tradicionalistas, a referência BSS começou a penetrar os círculos dos investigadores mais jovens e mesmo nas equipas do ICS as abordagens e metodologias de BSS começaram a produzir efeito nos mais tradicionalistas. Reações de uma violência pouco comum nos nossos meios académicos acomodados sucederam-se, regra geral pouco propensos à bordoada das ideias e mais especializados na pequena intriga e na marginalização assumida de quem contraria os putativos “patrões” da investigação.

A ascensão da obra de BSS é indissociável do mundo concreto da sua prática política, com fortíssima ligação aos movimentos revolucionários da América Latina. Todos nos recordamos do prestígio de texto, de discurso e de palco que o sociólogo português mantinha no Fórum Social Mundial. Recordo-me de um texto expressivo assinado por BSS na Revista Crítica de Ciências Sociais, em 2005, que se apresentava como alternativa à do ICS: “A crítica da governação neoliberal: O Fórum Social Mundial como política e legalidade cosmopolita subalterna” que vos poderá ajudar a perceber a onda para nela surfar.

Recordando bons tempos e investigação pela qual também passei, pode dizer-se que BSS pode ser remetido para a tradição da sociologia da dependência que os movimentos de libertação e revolucionários pelo mundo e com especial incidência na América Latina ajudaram a construir. Esse movimento foi muito importante, pois equivale com clareza à inversão dos tempos do etnocentrismo ocidental que procurava analisar os povos subdesenvolvidos à luz dos valores e princípios ocidentais. Nesse tempo, era o contrário que se observava. A sociologia ocidental bebia e importava a compreensão do mundo dependente e procurava, a essa luz, transformar-se. Algo de similar se passou na economia, mas isso é conversa para outra altura.

É nesse contexto de fortíssima ligação entre a investigação e a prática política que BSS constrói o que poderíamos designar de diabolização do imperialismo americano. Tudo o que poderia significar luta e reação contra essa hegemonia imperial era olhada com devoção. Os seus erros e desvios seriam sempre contextualizados face à opressão americana, contribuindo para relativizar dimensões como poder pessoal, corrupção, desigualdade interna e outros desvios. Claro que a decomposição da União Soviética, o brutal acantonamento de utopias que viraram manifestações residuais de uma alternativa e a relevância cada vez maior das estruturas políticas, sociais e económicas responsáveis pela corrupção, má governação e reprodução dos legados coloniais haveriam de bater forte e feio nestas correntes de investigação. E uma bifurcação tendeu a instalar-se: houve correntes que se concentraram exaustivamente na crítica do neoliberalismo e da hegemonia americana embora sem clamar pela existência de alternativas viáveis fora do quadro do capitalismo e as que não abandonaram os referenciais cada vez mais residuais da utopia.

 

A aceleração do tempo histórico foi brutal, transformando radicalmente o contexto em que as sociologias da dependência foram construídas. Nesse tempo, seria impossível o aparecimento de uma obra como a de Branko Milanovic – CAPITALISM ALONE – THE FUTURE OF THE SYSTEM THAT RULES THE WORLD (2019, Belknap Press), já por repetidas vezes referida neste blogue. É que nos grandes blocos que poderiam opor-se à pretensa hegemonia americana, China e Rússia, temos, respetiva e economicamente, regimes de capitalismo, seja de Estado com partido único, seja do mais despudorado autoritarismo cleptocrata.

A controvérsia que o Jornal Público acolheu entre o seu Diretor Manuel Carvalho e BSS releva deste entendimento e deste contexto. Por mais que o tentasse, o Emérito Diretor do CES não conseguiu condenar com clareza a invasão russa, aventurou-se por ínvios caminhos de projetar indiretamente a culpa no Ocidente e na NATO e, acossado, recorreu como seria inevitável e expectável à TEORIA DA COMPLEXIDADE da qual se considera um incontornável representante. Esse recurso foi obviamente o último para escapar a não ter discutido a invasão russa numa lógica de preto ou branco. A teoria da complexidade é seguramente algo de valioso para entendermos o mundo contemporâneo. Mas, neste caso, ignorar que o regime de Putin se insere num contínuo histórico que o advento da revolução de 1917 aparentemente interrompeu até à dissolução da União Soviética, releva já não da sedução da teoria da complexidade, mas de uma deficiente interpretação das condições históricas concretas, o que para um marxista equivale a uma condenação.

Ora é no âmbito da denúncia de tudo isto que temos de compreender e louvar o corajoso artigo de Elísio Estanque, também investigador no CES, criticando a insustentável elaboração de BSS em torno dos “Mas” suscitados pela invasão russa. Falar aqui de coragem não significa, como bem compreendem, que esteja a insinuar que o ambiente de investigação no CES não seja de liberdade de pensamento. É um texto corajoso porque desconstruir toda uma obra e interpretação em função do juízo a que ela conduziu numa situação trágica como a da invasão da Ucrânia implica muita lucidez e confiança nos seus argumentos.

E, dia a dia de guerra que se concretiza, mais se enraíza na minha alma de ocidental e acomodado a perceção de que, face à coragem espantosa dos Ucranianos, somos minúsculos e que o nosso próprio país está tramado com o comparativamente mais baixo orgulho nacional de que podemos dar prova. É verdade que temos sido solidários no acolhimento dos que sofrem e são obrigados a partir, deixando os seus a combater. Por estes dias, um vídeo fez-me saltar algumas lágrimas – numa Escola italiana, algures em qualquer sítio, duas pequenas Ucranianas, recém-chegadas e logo integradas na Escola (porque a sua perceção da educação e da qualificação não é a nossa), foram surpreendidas por uma receção comovente e calorosa de todos os jovens da Escola e seus professores. Fica bem num vídeo e consola-nos. Mas isso ao pé da coragem dos Ucranianos é apenas uma minudência. Importante, mas uma minudência.

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