(A proximidade afetiva que muitos de nós ganharam em relação à Ucrânia como país independente agredido pelo sonho imperial de um autocrata tem feito que se procure informação histórica e não só para tentar compreender aquela resistência heroica, estranha para os ocidentais que se habituaram a pensar a guerra como algo de distante e anacrónico. Não fui exceção a essa tendência. Só que nessa procura de informação e de revisitação histórica, dei com elementos que apontam para uma complexidade e volatilidade de referências, difíceis de compreender neste retângulo, que já foi império, mas que tem as suas fronteiras e gentes bem definidas há muitos, muitos anos. Mas talvez o acontecimento mais tenebroso da história Ucraniana digamos do último século e meio é regra geral conhecido por Babi Yar, ou por Babyn Yar, a história trágica de um massacre perpetrado pelos nazis de cerca de 33.000 judeus ucranianos nos arredores de Kiev. Um livro fundamental só editado em pleno e sem censura depois da queda da União Soviética e um documentário de um cineasta ucraniano prestes a estrear em Nova Iorque documentam-nos o que muitos e por razões diferentes quiseram ocultar …)
A Babi Yar ou Babyn Yar é o nome dado a uma ravina arenosa nos arredores de Kiev na qual ao longo de dois fatídicos de setembro de 1941 os nazis de Hitler que tinham invadido a Ucrânia massacraram, estima-se, mais de 33.000 judeus. A história conta que a mesma ravina foi também o local de outras execuções em massa, tais como prisioneiros de guerra, resistentes, população Roma e outros grupos de judeus. Na antecâmara dessa tragédia, convém recordar que a ocupação soviética de 1939 retirou algumas cidades ucranianas de então da sua integração em território polaco (Lviv, então Lvov e antes Lemberg) e que uns anos antes, em 1932-1933, zonas do território ucraniano a oriente viram na sequência das fomes geradas pela coletivização forçada soviética ver dizimadas cerca de quatro milhões de pessoas.
O massacre da Babi Yar foi ocultado compreensivelmente dos registos nazis, mas também pelos soviéticos na sequência da perseguição à população judia aí também registada. O documental escrito sobre o massacre, escrito sob a forma de um romance, foi censurado pelas autoridades soviéticas e o autor, Anatoly Kuznetsov, foi obrigado a publicar em 1961 uma versão truncada e censurada. Só em 1969, depois de ter fugido da União Soviética com os filmes em que transcrevera o manuscrito não censurado, a obra foi publicada pela primeira vez em Nova Iorque pela Farrar, Straus and Giroux. É esta versão que tenho andado a ler, sendo possível compreender que o relato foi construído ao longo de vários anos, dada a complexidade da recolha de informação sobre um acontecimento que teria ficado oculto para sempre: Na parte censurada da introdução, Kuznetsov escreve: “Estou a escrever este livro sem grandes preocupações com regras literárias (ou quaisquer sistemas políticos, fronteiras, censores ou preconceitos nacionais. Estou a escrevê-lo como se tivesse de apresentar evidência em qualquer juramento de um tribunal superior e estivesse preparado para responder a qualquer palavra. Este livro regista apenas a verdade – como efetivamente aconteceu”.
O livro começa com a entrada dos nazis e a debandada do Exército Vermelho, para depois em sucessivos capítulos registar o processo que conduziu ao massacre e terminar com as sucessivas tentativas de intervenção urbanística no local da tragédia, como se fosse necessário criar uma nova forma urbana e assim apagar a memória de um sórdido massacre. Nos anos 50, a ravina chegou a estar ocupada por detritos e resíduos industriais, uma estranha maneira de honrar a morte de quem foi ali massacrado. A ocupação nazi de Kiev concretiza-se a 19 de setembro e cinco dias depois a aviação russa bombardeou a cidade. Foi na sequência e como represália desse ataque que o massacre foi perpetrado. Entre os materiais consultados, destaca-se o testemunho da miraculosa sobrevivência de Dina Pronicheva.
Por coincidência meramente circunstancial, enquanto mergulhava no livro chegou-me ao conhecimento um artigo da New York Review of Books, no qual se faz referência a um documentário do mais importante cineasta ucraniano Sergei Loznitsa, a estrear por estes dias em Nova Iorque e designado de Babi Yar. Context. Loznitsa é conhecido pelo seu trabalho sobre arquivos documentais, sendo por vezes criticado pelo que os seus documentários não dizem. Num material que editou sobre os funerais de Estaline, foi-lhe dirigida a acusação de num filme sem narração só na parte final se ouvir uma voz-off a denunciar a vastidão de crimes de sangue atribuída à sua ação e influência direta.
Neste caso, segundo reza o artigo de J. Hoberman, o documentário incide naturalmente sobre arquivos ucranianos, russos e alemães do antes e do depois do massacre, já que não existe material fotográfico ou fílmico sobre a tragédia sanguinária.
Por ironia sangrenta, o sítio do memorial de Babi Yar foi bombardeado pelos Russos no seu ataque a Kiev, perto da torre da televisão pública ucraniana. Desconhece-se se foi um dano colateral do ataque dirigido à torre das telecomunicações ou se, por ironia revanchista, o ódio soviético de hoje reiterou a ocultação realizada no passado da natureza étnica daquele massacre.
De complexidade histórica estamos entendidos.
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