(Escrevo depois de ter visualizado um vídeo difundido pela History of Music no qual uma artista profissional ucraniana, Irina Maniukina, se despede do seu piano e da sua casa, atingida por bombardeamentos, antes de abandonar a cidade de Bila Tserkva, a sul de Kiev. E por estranho que pareça o tema do post de hoje mobiliza o conhecimento de uma jornalista, Masha Gessen, com nacionalidade russa e americana que todos consideram uma autoridade incontornável, escrevendo a partir de Moscovo, sobre Putin e a visão truncada e falseada que vai sendo veiculada pela comunicação oficial do Kremlin. Nos últimos dias, a jornalista tem-se multiplicado em testemunhos para a New Yorker, mas é à entrevista de grande profundidade por ela concedida ao podcast de Ezra Klein no New York Times que vou buscar a principal inspiração (link AQUI para a versão áudio e AQUI para a versão transcrita).
A jornalista que presentemente cobre os assuntos na Rússia para a revista americana de que continuo um assinante fiel e empenhado na sua divulgação é autora de dois livros largamente invocados nos dias de hoje: uma biografia de Putin elaborada a partir de informação que foi recolhendo no seu trabalho, “The Man Without a Face” e uma outra obra de não menor importância para a compreensão dos tempos negros que se perfilam no nosso horizonte, “The Future Is History: How Totalitarianism Reclaimed Russia”. Do outro lado, as entrevistas de Ezra Klein no seu podcast são do melhor que temos à nossa disposição. Por isso a inspiração para este post foi tão forte. Uma nota apenas para situar a entrevista no dia 10 de março, por conseguinte ainda antes de começarem a aparecer as primeiras notícias sobre a aproximação e cerco a Kiev e sobre a aproximação das forças russas ao território mais ocidental da Ucrânia (notícia por exemplo da destruição de uma base ucraniana próxima de Lviv).
O início da entrevista projeta-se na perceção que a jornalista, regressada a Moscovo um dia depois de se ter iniciado a invasão russa, constrói da ambiência russa a partir do seu quarto de hotel na Praça Pushkin, uma das praças centrais de Moscovo e na qual tendiam a concentrar-se as manifestações do tempo da União Soviética. E o que ressalta das impressões de Gessen é a total separação entre o que pode ser apreendido a partir da observação da rua e o que ela captou a partir da visita a alguns amigos seus ainda a residir na capital russa. Claro que se trata de uma amostra enviesada, já que poderemos pressupor que toda a gente conhecida de Gessen tem uma informação que vai para além da truncada informação oficial. Mas a jornalista reporta que praticamente em todas as casas que visitou presenciou propósitos de saída imediata ou próxima do país. Os passaportes estão prontos e à mão. Ou seja, à superfície a impressão de que nada se passara. No interior das vidas dos seus amigos, a perceção de que algo de horrendo tinha acontecido e que as consequências internas iriam ser devastadoras, aconselhando a saída enquanto era possível.
E uma outra dualidade é registada por Masha Gessen. A que ressalta do confronto entre quem conseguiu manter, essencialmente via assinatura da plataforma russa Telegram, o acesso á informação e os que estão limitados à informação oficial. Esta plataforma não integra apenas um serviço de mensagens, mas permite a mobilização de alguns canais de streaming, funcionando como um elemento que fura de certo modo a comunicação oficial. Mas, no futuro próximo, dado o cancelamento de todos os meios de pagamento eletrónicos com o ocidente, as assinaturas para essas plataformas VPN já não poderão ser renovadas. Do lado oposto, temos a família russa típica que recorre apenas à televisão oficial, já que os três principais canais noticiosos independentes foram já silenciados, a estação de rádio Echo Moscow, o canal de televisão NTV Rain e o encerramento do próprio Facebook. Pela TV oficial corre obviamente a versão de Operação Militar Especial, de intervenção seletiva na Ucrânia para conter agressões locais e toda a ladainha que, com a maior lata diplomática jamais vista, alguns embaixadores russos têm vindo a presentear os seus entrevistadores (a mais impressionante é a da entrevista do embaixador russo em França ao Tele Matin, da qual não consegui recuperar o link).
Percebe-se das palavras de Masha Gessen que é uma minoria da população russa que tem perceção plena da catástrofe que está a acontecer e dos efeitos devastadores que antecipam para a sociedade russa. Ou seja, a desproporção entre a massa de ucranianos que está a fugir do horror da invasão e o número de russos que estão a deixar para trás tudo o que possuem é gigantesca, afinal um indicador da desigualdade com que a agressão foi perpetrada.
A entrevista entra depois numa parte muito sugestiva sobre a compreensão do modo como os russos não devidamente informados do que se passa irão digerir os efeitos das sanções, embargos e encerramentos de empresas e serviços ligados a grandes grupos internacionais. E aqui a perspicácia de Gessen é notável. A jornalista americano-russa chama a atenção para os últimos 30 anos da sociedade russa em que diferentes períodos de hiperinflação e diferentes níveis de acesso a bens de consumo mundializados se sucederam, o que pode ter provocado alguma capacidade de adaptação a situações de escassez. Mas é um facto que a desconexão que agora se avizinha suplantada tudo que terá sido experienciado nesses períodos mais turbulentos, designadamente após a ocupação da Crimeia. Mas é neste contexto que Gessen fala de uma ausência de esfera pública de perceção, ditada pelo controlo dos meios de comunicação mais disseminados.: “Assim, o que está disponível é a experiência privada e talvez a experiência privada de um conjunto de pessoas com as quais se comunica de perto. Mas não há a experiência de uma esfera pública. E, nesse contexto, as pessoas querem acreditar que as coisas voltarão provavelmente ao normal, é mais fácil acreditar e as pessoas querem acreditar que assim seja”.
O profundo conhecimento que a jornalista tem da sociedade russa fá-la antecipar algum tipo de pessimismo quanto aos efeitos concretos das sanções, sobretudo quando os comparamos com o tempo possível da heroica resistência ucraniana: “A ideia de que as sanções poderão eventualmente mudar o comportamento de Putin ou motivar as elites ou as massas a aderir e protestar e afastar Putin é errada. Está demonstrado que é errada. Foi por várias vezes ensaiada e não funcionou. É claro que nunca foram observadas sanções com esta escala e é difícil pensar o novo contexto. (…) Realisticamente, o impacto pleno das sanções será apreendido em alguns meses. Mas continuo a pensar que elas não provocarão uma revolta das elites e muito menos que possam provocar protestos em massa, especialmente se acontecer a esperada repressão.”
A entrevista concentra-se depois no discurso de Putin de 21 de fevereiro a que este blogue dedicou uma atenção particular e espanta-me que o mesmo não tenha sido realizado pela esmagadora maioria da comunicação social portuguesa. Sem querer repetir essa atenção, Gessen insere Putin num contínuo que vem de Ivan o Terrível, personagem reabilitada por ele próprio, Pedro o Grande e Estaline. Companhias de respeito e o fascínio pelo império.
A parte mais interessante da entrevista remete para a tese da impossibilidade real de se compreender como é que pensa uma sociedade sob o jugo totalitário: “A razão para que um regime totalitário precise de uma legitimidade percebida é que isso é a única coisa que separa o regime da perda de controlo das suas forças armadas”. Ou ainda de modo mais acutilante: “Quando se está sempre à beira do abismo e o vosso líder continua a dizer-vos que a única razão para não terem caído deve-se a ele, isso determina que de certa maneira acreditem que, simultaneamente, o líder vos conduziu ao precipício e vos protege de nele cair”.
Finalmente, há na entrevista elementos em torno da anti-modernidade da lógica imperial de Putin. Gessen esforça-se por nos transmitir a ideia de que, ao invés de nos refugiarmos na pretensa irracionalidade do autocrata russo e de captarmos diferenças entre o que ele pensa e o que ele firma publicamente, o essencial será compreender o mundo por ele concebido e no quadro do qual decide. Assim, é claro que a Rússia que tem na cabeça não é a Rússia da União Soviética, mas antes a Rússia imperial. E a jornalista mergulha fundo na história dos fins do século XX e invoca a humilhação a que a Rússia foi submetida na questão do Kosovo: “Foi uma experiência incrível de humilhação e de ausência de poder para a liderança Russa e penso que também para os Russos comuns. A ideia de que não foram sequer consultados. De que nem sequer fingiram que queriam ouvir-nos. O então primeiro-Ministro Russo Primakov estava já em viagem para conversações com Al Gore em Washington acerca da dívida da Rússia quando descobriu que os EUA estavam a rejeitar a discussão do bombardeamento planeado com a Rússia. Daí que tenha invertido a viagem e regressado a Moscovo e isso representou um ponto de rotura na política russa”.
A entrevista acaba num tom de pessimismo algo preocupante. E se nos reportarmos ao dia de hoje, os rumores de que estarão em evolução conversações promissoras por teleconferência chocam brutalmente com as notícias do trágico bombardeamento sobre uma base a cerca de 20 quilómetros da fronteira com a Polónia, muito perto de Lviv. O escalamento possível a partir do ataque a uma base em que se encontravam elementos da ONU e de outros países não beligerantes é suficientemente preocupante para compreender o pessimismo de Masha Gessen e desvalorizar os tais rumores de que poderá ser possível um acordo. E aqui estou com o José Milhazes. Um cessar fogo de um dia ou dois que venha para dar crédito a tais rumores.
(Correção de várias gralhas e imprecisões em 14.03.2022)
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