sábado, 5 de março de 2022

A FÁBULA DAS DUAS CRISES … NÃO ESQUECENDO A DE 1930

 

                                                                        (EPI, link aqui)

(Quando lecionei na FEP uma disciplina facultativa do curso de Economia chamada Teoria dos Ciclos Económicos, estávamos paradoxalmente em tempos de acalmia do ciclo, e houve mesmo economistas de renome, alguns deles com o Nobel de Economia (Robert Lucas Jr.), que pensaram ter domesticado para sempre o fenómeno, graças aos prodígios da política monetária e ao encapsulamento num vaso da história da teoria Keynesiana. No fim dos anos 90, as crises cambiais asiáticas, com epicentro nos problemas do bath tailandês, ameaçaram que não seria assim, lembro-me bem de ter massacrado os alunos com esses materiais, mas por esses tempos estávamos limitados aos valiosos estudos sobre a Grande Depressão de 1930 e o livro de Kindleberger Manias, Panics and Crashes – a history of financial crisis que começou a ser publicado em sucessivas edições a partir de 1978, depois escrito conjuntamente com Robert Z. Aliber, era um dos livros sempre à mão para me recordar que o branqueamento das crises não passaria…).

 

A vida é sempre irónica e tem destas coisas e acabei por reformar-me da docência universitária (para me dedicar à consultadoria e ao envelhecimento ativo) quando precisamente o “monstro” do ciclo acordara de novo, com a crise financeira de 2007-2008 (e de novo soube bem reler o Manias, Panics and Crashes de Kindleberger) que os economistas batizaram de Grande Recessão para a distinguir dos contornos da Grande Depressão de 1930. Deu-me gozo na altura assistir às piruetas dos que tinham sentenciado a morte do ciclo e cantado as glórias do grande domador política monetária. E, ainda não muito esquecidos da agonia que a recuperação de 2007-2008 representara, eis que a crise pandémica vem relembrar que por vezes há fatores exógenos de grande porte, caso atingindo a economia global, que determinam o regresso ao domínio do desequilíbrio. Por muito que a política monetária se tenha esforçado, e de facto pisou inesperadas linhas vermelhas traçadas pelas mentes mais ortodoxas, explorando domínios de intervenção que estavam nos manuais, mas para os quais não havia evidência recente.

E para relembrar que os ciclos e as crises existem aqui temos no presente mais uma ameaça, a invasão da Ucrânia, a sofisticar o arsenal dos modelos de crises. Como devem recordar-se já na sequência da crise pandémica e agora com a crise ucraniana volta a falar-se de estagflação, crescimento económico, desemprego e inflação. Ironia das ironias, foi um contexto desta natureza, o do fim dos anos 70, a abrir o caminho à grande crítica da política económica que Lucas e seus pares conduziram e que levou ao enterro simbólico do agora renascido Keynes.

Comparando as crises de 2007-2008 e a crise pandémica, e as crises comparam-se de várias maneiras, mas a maneira como se recupera das mesmas é talvez a mais promissora, existem hoje elementos de análise de grande alcance para compreender que o mundo aprendeu e muito com os acontecimentos de 2007-2008. E aprendeu sobretudo porque isso acabou também por trazer luz às interpretações de 1930 e ao que ela representara.

Como sempre é a economia americana que traz os elementos visuais mais sugestivos. O gráfico que circulou na blogosfera económica das últimas semanas vale por mil palavras e permite uma comparação objetiva das duas crises mais recentes, oferecendo elementos sólidos para perceber que a diferença esteve sobretudo na maneira e na intensidade da intervenção. Para isso, muito contribuiu o facto de 2007-2008 resultar dos desmandos do financeiro e a crise pandémica resultar de um problema sanitário que atingia todos.

O gráfico do Economic Policy Institute (EPI) segue a criação de emprego depois do pico de intensidade das duas crises e para uma agónica e lenta recuperação após 2007-2008 tivemos uma rápida criação de emprego na crise pandémica. Não se trata de pura magia. O que se passou de facto foi uma decidida, rápida e intensa intervenção pública, algo que não aconteceu na Grande Recessão, na qual se procurou ir ao fundo das consequências da política monetária. A política fiscal foi bastante moderada, muita parcimónia aconteceu e daí a duração de 10 anos que foi necessário suportar até recuperar os níveis de emprego anteriores a 2007-2008. Na crise pandémica, a situação inverteu-se. A política fiscal comandou o processo e a monetária acomodou a situação. Aprendizagem da boa, a inspiração keynesiana deixou de ser um fantasma a pairar sobre as decisões dos executores da política económica, mas se transformar no seu principal e pode de fogo face aos problemas da devastação económica viral.

Resta dizer que os que condenaram o ciclo económico e as crises a um abafamento precoce estarão por estes dias a inventar a melhor maneira de salvar a face. Talvez se tenham remetido de novo ao formalismo dos seus modelos, inventando uma nova realidade, para compensar aquela que os atraiçoou. Como se algo correspondente à essência do capitalismo, o ciclo e as crises, pudessem ser apagadas da sua análise e do contexto da política económica. Benza-os a entidade divina em que acreditarem.

Sem comentários:

Enviar um comentário