(Tenho-me interrogado bastante por estes dias sobre o que é que a diplomacia pode efetivamente fazer para parar ou pelo menos mitigar a agressão russa ao território ucraniano. Qual é a sua margem de manobra para conseguir alguma aproximação entre as partes? É verdade que, embora haja muito pouca gente que alimente expectativas positivas sobre as conversas ou negociações que estão no terreno, alguma suspensão do tempo da agressão tem sido conseguida e isso tem pelo menos facilitado o êxodo de refugiados para os países da União Europeia vizinhos do teatro de guerra. Mas a minha interrogação visava algo de mais amplo do que essa dimensão da diplomacia no terreno. Referia-me à possibilidade de encontrar uma saída, embora já não tenha ilusões quanto ao novo tempo que teremos pela frente, para a minha geração essencialmente os filhos e netos. A questão realmente importante é saber se a diplomacia pode antecipar uma saída com um mínimo de sustentação e de não regresso próximo à agressão.
O prestigiado cronista do New York Times Thomas Friedmann, o autor do célebre e controverso O Mundo é Plano e de outros êxitos editoriais, dizia hoje na sua crónica que quanto mais racionalizava a ideia de que a ofensiva de Putin estava a caminhar para um beco sem saída mais assustado ficava quanto aos cenários possíveis de evolução desta negra situação. Citemos um excerto (link aqui): “Nas próximas semanas, tornar-se-á cada vez mais óbvio que o nosso maior problema com Putin na Ucrânia é que ele rejeitará a hipótese de perder cedo e pouco e que o único resultado será que ele vai perder em grande e tarde. Mas por causa disto ele está só na sua Guerra e não poderá admitir a derrota, e daí que isso poderá levar a que ele dobre a parada na Ucrânia até que … admita o uso da arma nuclear”.
É neste contexto e com a evidência de que a agressão russa conduziu o governo de Zelensky naturalmente à defesa intransigente da sua integridade territorial que me interrogo sobre a difícil e nobre arte da diplomacia neste contexto de posições tão extremadas. É verdade que de em vez em quando surge uma aberta. Hoje, Zelensky admitiu interessar-se pelo entendimento que os russos estarão dispostos a dar à chamada “neutralização” da Ucrânia. Da semântica também se faz a guerra e certamente que “neutralização” não poderá significar aniquilação ou supressão do mapa. O problema é que a formação destas abertas fica à partida danificada quando uma maternidade (Mariupol) é destruída pelos russos sem piedade, quando populações civis são atacadas ou quando o cinismo bélico se traduz na abertura de corredores humanitários cuja única saída são cidades russas ou bielorussas.
É óbvio que temos o exemplo histórico da resistência finlandesa que convenceu Estaline que seria praticamente impossível estabelecer um regime comunista na Finlândia. E também podemos admitir que o cenário da total ocupação do território ucraniano já terá sido eliminado dos cenários com que a inteligência russa próxima de Putin estará a trabalhar. Os diplomatas mais hábeis ou otimistas estarão porventura neste momento a pensar que o ataque final não perpetrado a Kiev poderá dever-se não só à estoica e notável resistência ucraniana, mas também ao desejo de Moscovo pressionar o governo de Zelensky e coloca-lo numa posição de negociação mais desfavorável.
E daí que a minha interrogação tenha sentido. Mas que raio de base de negociação, ou seja de cedência mútua, a diplomacia pode trazer para a mesa das conversações possíveis?
Tenho lido alguma coisa sobre o assunto (por exemplo, Anatol Lieven no Common Dreams, link aqui) e há quem pense que obrigar as forças russas a regressar à posição que tinham antes da invasão poderia ser um objeto possível de entendimento. Simultaneamente, aos Ucranianos seria oferecida a hipótese de assinarem tratados similares aos que a Finlândia assinou com a União Soviética e 1948 e ao que foi assinado em 1954 para materializar a saída das forças ocidentais e soviéticas da Áustria. Esta base tem um importante ponto de interrogação que consistirá no modo como Ucrânia e Rússia avaliarão a presença na Crimeia (ocupação a que o ocidente praticamente não concedeu nenhuma resposta que se visse) e o reconhecimento por parte da Rússia do separatismo e independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk. A hipótese de uma reedição possível das negociações de Minsk (um Minsk II, comprometido pela facilidade e arrogância com que a Rússia rasgou os compromissos de Minsk 1) parece-me música celestial, mas quem sou eu para entender os meandros e mistérios da diplomacia.
Em tudo isto, parece-me que a NATO já não é problema, pois o próprio Zelensky já compreendeu que não adianta insistir nessa reivindicação e ainda hoje o compreendeu melhor quando os EUA se opuseram á cedência à Ucrânia por parte da Polónia de um conjunto de caças.
O economista do desenvolvimento Robert H. Wade, professor na London School of Economics, tem um contributo interessante para a discussão (link aqui). A sua base de negociação começa provocatoriamente com um recado para a NATO e governos ocidentais: "o primeiro ponto para uma solução diplomática deve basear-se na aceitação por parte dos EUA e do Ocidente de que “soberania” não significa os governos serem livres para tomar decisões sem ter em conta os efeitos sobre a segurança de outros países soberanos”.
Quanto ao estatuto da Ucrânia, Wade fala de um modelo comparável ao da Finlândia e de uma redução monitorizada pela ONU da força militar no território ucraniano. Por muito respeito intelectual que a obra de Wade me inspire, esta última dimensão também me soa a música celestial. É que países como a Finlândia e a extensão do seu modelo para a Ucrânia já não podem ignorar que paredes meias, Rússia e Bielorússia, estão mentes e poderes que rasgam tratados como quem manuseia papel higiénico no quarto de banho. Ser neutral tem hoje um entendimento completamente diferente quando o país vizinho se comporta desabridamente e sem respeitar os princípios básicos da guerra.
Quanto à última dimensão da base negocial de Wade, essa já tem mais sentido. Respeito pelas minorias étnicas ucranianas e russas em territórios adversos e admitir constitucionalmente o russo como uma segunda língua na Ucrânia, embora vá despertar a ira dos nacionalistas e radicais ucranianos, parecem ser matérias que para uma primeira avaliação possam estar na mesa das conversações. Aliás, conhecemos os alertas de gente inteligente e avisada que nos avisa da necessidade de não hostilizar o povo russo, pois nas condições atuais e dada a desinformação viciosa que o regime de Putin impõe internamente, é muito difícil perceber qual é o peso relativo dos russos que estão com Putin e dos russos que o têm de suportar pois levam na cabeça se manifestarem a sua oposição.
Por tudo isto, os meus respeitos para com a diplomacia empenhada, sobretudo pelo seu esforço de encontrar abertas num contexto tão negro e bloqueado.
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