terça-feira, 29 de março de 2022

CONVERGÊNCIAS E TEMPOS ESTRANHOS

 

(Conheço muita gente que entra em parafuso quando os referentes e quadros de opinião deixam de ser estáveis e se misturam em verdadeiras orgias de procura de novas sínteses. Os tempos estão favoráveis a esses turbilhões de ideias. Esse é talvez um dos indicadores de que não estarei velho caquético. Gosto de me aperceber e compreender o que mexe nas novas con(di)vergências de ideias. É verdade que o país e a sua pequenez não ajudam. Fora a ciência de ponta, em que alguns Portugueses cavalgam, com todo o mérito a onda, a difusão das ideias em Portugal continua a padecer de um desfasamento temporal grande. Por isso, existe sempre o risco de nos interessarmos por algo e a sua chegada ao País acontecer quando já não estivermos por cá. É a vida como diria o outro. Neste capítulo, os EUA são um laboratório espantoso e um fervilhar constante de convergências e divergências de ideias. Assim é que fico sempre espantado quando, apesar dessa agitação de pensamento, na hora da verdade se assiste sempre a uma polarização brutal, do tipo Trump versus Hillary ou Biden versus Trump. Tudo se passa, afinal, como se esse fervilhar de ideias acontecesse muito nas franjas da sociedade, e o coração da mesma continuasse totalmente à margem. O tema de hoje, o aparecimento de um novo jornal online, COMPACT, traz novas e estranhas convergências …)

Muita gente se tem feito eco de que a clivagem esquerda-direita está gasta e sem especial utilidade analítica. Estou entre os que alinham com essa perceção, mas que continuam a sentir uma grande dificuldade em abandoná-la, pura e simplesmente. Entretanto, uma outra clivagem foi ganhando expressão, com a democracia e liberdade no centro de todas as escolhas. A história encarregou-se de me mostrar que as soluções de tomada revolucionária do poder tenderam a definhar, transformando-se em processos plutocráticos, cleptocráticos, pessoais ou familiares, opressivos, anulando, umas vezes rapidamente, outras com a erosão do tempo, os valores justos que as precipitaram.

Mas no quadro do modelo que, ao nível da grande abstração, designamos por democracia, muitos começaram a sentir a necessidade de distinguir entre democracias liberais e iliberais. Os puristas dirão que é democracia ou não é. O facto é que a existência de sistemas eleitorais e de consulta livre das populações eleitoras começou a não ser uma condição suficiente para registar a presença da democracia. Por muitas zonas do mundo, as eleições abriram o caminho a autocratas, mais ou menos cleptocráticos e dispostos a perpetuarem-se no poder e as eleições, trabalhadas, manipuladas ou engenhosamente organizadas, serviram em muitos casos essa perpetuação. Depois, também se percebeu que o liberalismo é ele próprio passível de várias nuances e interpretações. Sabemos, por exemplo, que a sua identificação abusiva com o liberalismo económico é extraordinariamente redutora, como o tem mostrado a “nossa” Iniciativa Liberal. E, finalmente, tal como provocatoriamente Branko Milanovic o tentou demonstrar em CAPITALISM ALONE, praticamente todas as variantes política e socioeconómicas acontecem no quadro de um sistema poderoso com muitas variedades (a conhecida e prestigiada literatura das Variedades do Capitalismo tinham claramente apontado essa direção).

Imaginem que, à mesa de um bar mais ou menos sofisticado de Manhattan, dois conservadores de pendor religioso e um marxista mais ou menos populista se juntam para conceber e publicar uma nova revista de análise política. Uma espécie de guerra em duas frentes contra a esquerda e contra a direita. Confusos? Eu também. Confesso que demorei algum tempo a perceber o conceito: “Promover um estado social-democrata forte que defenda a comunidade – local e nacional, familiar e religiosa – contra uma esquerda libertina e uma direita libertária”, publicando essencialmente pensamento crítico de qualidade que transcenda as referidas categorias. É suficientemente confuso e estranho para ser ignorado. Tal como a jornalista do New York Times Jennifer Schuessler o registou, o lançamento da revista COMPACT trouxe inicialmente para a liça gente como católicos antiliberais, feministas marxistas dissidentes, radicais Europeus e populistas Americanos.

Os três editores que subscrevem o estatuto editorial, Matthew Schmitz, Edwin Aponte e Sohrab Ahmari rejeitam a curiosidade de COMPACT ser também o nome de uma revista alemã de extrema-direita, bloqueada pelo Facebook por não respeitar as normas daquela rede social. O facto pode ser considerado um fait-divers, mas mostra que estas fusões de ideias trazem riscos enormes de ultrapassagem de determinadas linhas vermelhas. A complexidade das transformações em curso aponta para esse risco e a liberdade de pensamento exige um enorme trabalho de perspetiva e contextualização para não sermos apanhados numa deriva qualquer.

Assim, para além da curiosidade, há que estar atento ao que de estimulante pode por aqui aparecer, apenas para tentar compreender o tempo em que estamos.

Já agora, Christopher Caldwell tem uma peça interessante na nova revista, centrada na crítica, com a qual concordo, dirigida a uma leitura do conflito Ucrânia-Rússia elaborada a partir do velho “Choque de Civilizações” de Samuel Huntington. Em contrapartida, Caldwell vai buscar um outro conceito proposto mais tarde por Huntington, o de “torn country” (país rasgado): “Um país rasgado é aquele em que uma elite qualificada pode beneficiar da globalização, mas em que as partes do país que não pertencem às elites podem pagar um preço em termos de disrupção e de insegurança”. O que se aplica bem à Rússia, já que, ponderando as condições que Huntington associa ao Choque de Civilizações, a guerra Rússia-Ucrânia seria altamente improvável. Como sabemos, ela resulta do delírio de revisão da história e de reconstrução do império russo.


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