terça-feira, 29 de março de 2022

O MOTOMAMI DE ROSALÍA

 

(Já que estamos em onda de fusões de ideias, convergências estranhas, linhas vermelhas impercetíveis que todos corremos o risco de inadvertidamente pisar, de tempos loucos, não podia ficar indiferente ao último disco do furacão Rosalía, com o título também estranho de MOTOMAMI. A fogosa cantora espanhola que andou pelas Los Angeles mais Instagram deste mundo, que conviveu com as Kardashian, Kylie Jenner e outras, parece apostada em desconstruir tudo que seja ideia feita sobre a sua meteórica emergência na música popular. Haverá certamente quem, como eu, preferirá sempre o El Mal Querer a este excitante MOTOMAMI, mas aposto em que por mais conservadores que se reclamem não ficarão indiferentes a esta força criativa de Rosalía, espontânea ou preparada ao mínimo pormenor, isso é outra conversa…)

O nome e a música de Rosalía começaram por emergir em Espanha associadas aquela velha questão de saber se o flamengo tem inovação possível. O debate é recorrente, pois é de certo modo importado de outras situações similares: pode haver inovação num referencial que todo ele é tradicionalismo? Confesso que estou um pouco farto desta questão. Existirão sempre os indefetivelmente puristas, que irão considerar crime qualquer tentativa de criar uma trajetória de criatividade a partir do flamengo nas suas formas de música, canto ou dança. E, obviamente, haverá sempre que bebeu aí alguma influência e zarpou depois para novas linguagens e inspirações.

Esse debate regressou em força em Espanha quando Rosalía irrompeu e fez estrilho nos palcos e nas edições discográficas. Não pode dizer-se que Rosalía tenha ignorado esse debate, mas claramente que não se deixou aprisionar pelos seus limites e partiu para outras trajetórias de criatividade. Claro que em toda esta emergência impressionou sempre o profissionalismo comunicacional e de imagem que a acompanhou e sobre o qual ela se apoiou. O que gerou uma outra família de dúvidas: estávamos perante uma força da natureza indomável, brotando criatividade irreprimida ou, pelo contrário, Rosalía era um produto comunicacional que entrará rapidamente na roda do efémero?

Em novembro de 2018, a respeito de El mal Querer, o jornalista Fernando Navarro escrevia no El País assim: “Com Rosalía está a acontecer isto: o seu êxito intenso e que tudo atropela não nos está a deixar ver que arte existe por detrás do seu nome, já conhecido fora do território espanhol em lugares privilegiados aos quais muitos artistas com décadas de carreira nos seus ombros não chegaram. Mas convém que nos fixemos na floresta. Ou seja: para lá do fenómeno Rosalía, está a música. E El Mal Querer, o seu segundo e recente disco, tem o caráter de uma obra prima.”

De facto, muita gente reage mal quando um êxito é preparado comercialmente e inunda as redes sociais, como se não existisse um mercado musical, extremamente concorrencial, competitivo até à medula e que deixou de ser compatível com o “nacional porreirismo”, qualquer que seja o país e a corte dos puristas que continuam a ver os artistas como artesãos condenados a viver num vão de escada.

Claro que a qualidade do El Mal Querer desconstruiu muito desses pudores, até porque o disco colocava Rosalía nos meandros de um feminismo incandescente, pois todo o tema do disco é o amor obscuro e o aprisionamento de corações e de vidas de mulheres na mais completa obscuridade urbana.

É neste contexto que MOTOMAMI é ainda mais desconcertante. Depois de uns bons anos pandémicos em que a cantora de Barcelona rumou aos EUA e a Los Angeles, este disco rompe de novo com a trajetória anterior e descobre novas linguagens de expressão oral, musicais e de atitude. O mote de Rosalía parece ser: “Soy igual de cantaora con un chándal de Versace que vestidita de bailaora. / Y aunque a mí me maldigan a mis espaldas, de cada puñalaíta saco mi rabia… Yo soy muy mía”. Alguém não entendeu a mensagem?

Não deixa de ser simbólico que uma canção de cerca de um minuto dê corpo, espírito e nome ao disco, que a artista explica numa espécie de dicionário da sua nova linguagem: “uma forma de energia, uma forma de estar no mundo”. É impressionante o número de tweets que a ideia de motomami despertou no público feminino. Ou seja, ninguém fica indiferente.

O disco, engenhosamente preparado para o tempo ótimo do efémero e da atenção possível, canções em torno dos dois minutos, em média, vale pelo seu todo e sobretudo pela criatividade de linguagens e sons, em ritmo desbordante.

A cada disrupção criativa coloca-se sempre a velha questão: ficará por aqui ou terá unhas para sucessivas disrupções?

Enquanto permanecermos nessa interrogação, fiquemos com MOTOMAMI e de vez em quando recordemos as canções de El mal querer e também o Malamente. E se calhar, de disrupção em disrupção, descobriremos uma unidade.

Saudavelmente espontânea? Laboriosamente preparada para o mercado?

Não sei responder.

 

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