sábado, 19 de março de 2022

O REGRESSO DA MACRO

 


(Bem sei que este blogue não pode ser considerado um espaço de eleição para debater as questões da macroeconomia. Grande parte da nossa pequena comunidade de leitores agradece, por isso, que não me aventure demasiadas vezes por esses caminhos. Mas há uma causa mais ou menos próxima para ele ter surgido, pelo menos da minha parte, que tenho dificuldade em ignorar. O blogue representou para mim uma espécie de sucedâneo para as saudades da docência e da vida universitárias. Por isso, regresso por vezes ao mundo da macroeconomia. É este o caso. Estamos a assistir ao que poderia designar de regresso da macro e alguns dos debates recorrentes que atravessaram a macroeconomia, particularmente depois de 2008, estão aí vivos de novo e envolvendo gente de respeito ou que nos merece respeito. Não se admirem que isso suceda, como seria de esperar, a partir da economia americana. Pois é assim. Certamente que existe uma macroeconomia europeia. Mas em termos de agitação das ideias … não é a mesma coisa. É talvez um post um pouco longo mas o tema assim o obriga.)

Apresentemos o contexto. A partir dos sinais e opções de política económica (monetária e fiscal) suscitados pela economia americana, o debate que anda no ar pode ser descrito no inglês económico mais corrente pela seguinte questão: o Banco da Reserva Federal americano (FED) está ou não neste momento “abaixo ou aquém da curva”? O que significa isto? Estar abaixo da curva significa que o banco central estará atrasado ou errado em relação às medidas que deveria tomar para manter a inflação controlada. Ou seja, não estará a fazer subir suficientemente e ao ritmo necessário as taxas de juro para controlar a dita inflação.

Pode parecer estranho às gentes exteriores à profissão, designadamente aos que provêm do mundo das ciências fundamentais, que entre tanta cabeça de grande elevação de pensamento, já premiados com o Nobel de Economia ou para lá caminhando, não seja possível encontrar um consenso. Mas afinal o FED (obviamente com as consequências inevitáveis para julgar o comportamento dos outros bancos centrais, BCE integrado) está ou não “abaixo da curva”?

É este o tema do post de hoje e provavelmente terei de voltar ao assunto.

O problema é que perante uma questão aparentemente simples, atuar em tempo oportuno para controlar a inflação, do tipo sim ou não, nos perfilamos perante um novelo de questões que com a questão central estão interligadas, tornando a resposta mais complexa do que a simplicidade da questão justificaria.

Iniciando o desenovelamento da questão, deve discutir-se o que significa controlar a inflação. Com maior clareza a partir da década de 90, tem-se entendido que os bancos centrais devem afirmar a sua vontade de tudo fazerem para manterem uma meta de 2% para a variação de preços. Ou seja, isso pode parecer estranho aos não avisados destas manias dos macroeconomistas. Manter a inflação controlada não significa considerar um referencial de inflação zero. Admite-se que a inflação está controlada quando as expectativas de variação dos preços se estabilizam em torno de uma subida de 2%. Que é um referencial ou meta, o que significa que ela pode andar abaixo ou acima desse valor, mas sem contudo alterar o padrão das expectativas.

Num artigo que vivamente recomendo dada a sua escrita ter sido realizada num misto de artigo de divulgação e de paper científico, Paul Krugman refere muito recentemente (10 de março de 2022) numa publicação redigida para a sua instituição (o Stone Center on Socio-Economic Inequality) que a fixação pela meta de 2% como meta de inflação terá sido iniciada pelo Banco Central da Nova Zelândia e rapidamente acompanhada pela generalidade dos bancos centrais de todo o mundo (Krugman conduz-nos a um artigo do jornalista Neil Irwin no New York Times de dezembro de 2014 para captar o pioneirismo neo-zelandês nesta matéria, que assim passa a ser conhecido não apenas pelos Kiwis, pelo Râguebi ou pelos duros confinamentos pandémicos). Os 2% têm funcionado como uma espécie de amuleto dos Governadores e estranhamente resistido a diferentes contextos macroeconómicos e a toda a série de argumentos concebidos contra a hegemonia desse referencial.

Voltaremos daqui a pouco a esta fixação dos bancos centrais na meta dos 2%.

Sem entrar em grandes devaneios teóricos, o controlo de uma inflação que dá mostras de disparar duradouramente acima dos 2% faz-se regra geral procurando intervir sobre taxa de juro real fazendo-a coincidir tanto quanto possível com a taxa de juro real neutral ou compatível com uma situação de pleno emprego. Os macroeconomistas chamam a essa taxa de juro real de equilíbrio r*. Fazer aproximar a taxa de juro real desta taxa (não vos vou maçar com a questão de saber como é que se calcula r*), significará fazer subir tanto quanto o possível a taxa de juro real de mercado para as expectativas de variação de preços através da taxa de juro nominal de referência que o banco central pode controlar.

Tudo isto funcionou com alguma estabilidade até que as economias avançadas entraram no período de taxas de juro reais nulas ou negativas, o chamado zero lower bound. Este contexto precipitou-se com a Grande Recessão de 2008, mas no fim dos anos 90, a economia japonesa estava numa situação relativamente similar que Krugman batizou como o regresso da armadilha da liquidez. A política monetária parecia impotente para dinamizar a procura quando as taxas de juro estavam próximas de zero. E, de facto, a evolução comparada, a partir de 2008, da base monetária e da variação de preços mostrava que a política monetária se mostrava incapaz de mexer com o ambiente das taxas de juro em torno do zero. Numa situação desse tipo, de armadilha de liquidez, as economias parecem exigir aumentos de expectativas inflacionistas para saírem do equilíbrio na estagnação.

Já no tempo da economia japonesa do fim dos anos 90 e mais insistentemente com o prolongamento no tempo dos efeitos da Grande Recessão de 2008, confrontaram-se duas teses macroeconómicas para ultrapassar essa situação de armadilha da liquidez associada ao zero lower bound.

A primeira, claramente vencedora, e seguida pela grande generalidade dos bancos centrais, consistiu numa opção simples: (i) admitir em grande medida a impotência da política monetária para resolver por si só o problema; (ii) utilizar a política fiscal através de défices públicos para fazer aumentar a procura global e r* e (iii) admitir com isso que não seria necessário mexer no referencial ou meta dos 2% de inflação. Para o conforto desta opção, muito contribuiu nova investigação com Blanchard claramente a comandar as tropas, através da qual se chegou à conclusão que, em ambiente de taxas de juro nulas ou negativas, os défices públicos e o endividamento público associado deviam ser reconsiderados e largamente aceites. Para isso também muito contribuiu a evidência de que o investimento empresarial de horizonte temporal normal é pouco reativo à taxa de juro real. Apenas o investimento em capital fixo residencial com horizontes mais alargados é a ela sensível, mas, como se trata de investimento em bens não transacionáveis, a sua penalização pela política fiscal de aumento da taxa de juro real acaba por não penalizar a competitividade do país.

Pergunta-se: e a segunda opção que nunca conseguiu impor-se entre os bancos centrais? A segunda opção, associada em grande parte à chamada Escola de Princeton, em que o próprio se integrava à época, e também ao movimento dos neo-fisherianos (essencialmente Scott Summer) preconizava que os bancos centrais deveriam dar à economia as expectativas de crescimento inflacionário que ela precisava para fazer mexer o marasmo. Fá-lo-iam com a fixação de uma meta para a inflação dupla ou mais da dos 2% e com isso orientar as expectativas dos agentes económicos e assim influenciar investimentos futuros. No artigo anteriormente assinalado, Krugman confessa que a tese nunca foi ouvida em termos sérios e que prevaleceu o amuleto da meta dos 2%. Dispenso-me de trazer para aqui os argumentos muito válidos que Krugman invoca para justificar o seu próprio insucesso.

O prolongamento dos efeitos da Grande Recessão de 2008, de certo modo prolongados pelo relevo que a política fiscal continuou a assumir na macroeconomia pandémica, explica que tenhamos chegado aos novos surtos inflacionários (pandémicos e russo-ucranianos ainda mais recentemente) com o mesmo quadro macroeconómico de intervenção: o mesmo referencial de 2% para a inflação, forte relevo da política fiscal e mais atenção obviamente aos sinais inflacionistas. Porém, durante largo tempo, se é verdade que as expectativas de inflação a curto prazo começaram a abanar fortemente (disrupções de oferta a nível global, custos de transporte e pressão sobre os preços da energia), a verdade é que as expectativas de inflação mais a longo prazo, cinco e dez anos se mantiveram senão estacionárias, mas pelo menos com reduzida agitação. Como o refere Brad DeLong num outro post que recomendo, se acreditarmos que quem transaciona em títulos de longo prazo apreende bem as expectativas de variação de preços nesse horizonte, então as expectativas inflacionárias dos últimos anos a longo prazo contrariam a ideia de que a inflação venha aí para ficar duradouramente.

A generalidade dos bancos centrais, sem mexer no seu amuleto dos 2% de meta de inflação, tenderam a entender os sinais inflacionários pandémicos e os primeiros indícios russo-ucranianos como exemplos de fatores temporários de subida de preços. Todos sabemos, porém, que esta questão dos sinais de inflação temporária se desmorona para lá de períodos razoáveis de observação. O agravamento das disrupções provocadas pela invasão russa veio, por um lado, adensar a sombra de condições mais duradoras, atingindo também as "commodities" e os custos da alimentação. E não esqueçamos que o recrudescimento pandémico na China dos últimos dias adensará ainda mais as disrupções da oferta global.

E aqui estamos regressados à questão central: está ou não o FED abaixo da curva? Claro que o governador do banco central americano já anunciou que ao longo de 2022 e 2023 irá concretizar várias subidas de taxas de referência. Ainda que em próximo post regressemos a esta questão, há gente importante como Lawrence Summers a defender que a declaração de Powell não foi suficientemente clara e incisiva quanto à vontade de fazer tudo o que for necessário (Draghi tomou no BCE a dianteira do discurso nesta matéria) para manter a inflação em torno dos 2%. Estará a economia americana, como o sugere Summers, prestes a entrar numa espiral de inflação salários-preços?

Voltaremos no próximo post a esta questão.

Pode parecer esotérica e simplesmente académica. Mas não o é.

À distância de um Atlântico que nos separa, esta é uma questão que marcará a margem de manobra do novo Governo que António Costa apresentará talvez na próxima quinta feira, pelo menos ao nível de Ministros. O que significa que será tudo menos esotérica e académica.

Nota final:

Com as comemorações do meu dia do Pai a ficarem por abraços telefónico-digitais de filhos e netos, resta-me a calma de Seixas e o facto das aleluias se começarem a precipitar antecipando por largos dias a Páscoa. E deu para escrever um post tão longo e preparar o próximo.

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