domingo, 27 de março de 2022

IMPASSE?

 

                                                            (New York Times)

(A visita de Joe Biden à Europa e mais especificamente à Polónia, território mais próximo das hostilidades, teve pelo menos a virtude de mostrar que o ressurgimento da NATO paradoxalmente alcançado pela despudorada ofensiva de Putin sobre a Ucrânia coloca de novo a aliança atlântica no topo das preocupações e decisões de ambas as partes. Num mundo cada vez mais organizado em torno de grandes blocos, o tiro de partida que Biden, juntamente com o Reino Unido e a Austrália, decidira com o projeto AUKUS, está irremediavelmente reequacionado. A variável Putin, mais do que um irritante outlier, traz novas necessidades de reposicionamento ao Ocidente como um todo e o Presidente americano compreendeu-o rapidamente. Entretanto, se o rocket sobre Lviv, praticamente em simultâneo com o discurso de Biden na Polónia, traz a marca da imprevisibilidade que os movimentos das forças russas parecem ser neste momento portadores, a complexa relação dinâmica que existe entre o conflito no terreno e as diferentes ofensivas diplomáticas está em meu entender a traduzir-se num impasse cada vez mais enredado. O que é a mesma coisa que dizer, tragicamente diga-se, à custa do sofrimento ucraniano e da incómoda clarificação das grandes clarificações ocidentais …)

Parece hoje claro que a irresponsável abordagem dos EUA de Trump à consolidação da NATO e a hipócrita inépcia europeia no financiamento da organização pertencem hoje a um passado recente considerado como algo que nos conduziria a um abismo. A militarização aprofundada da organização e o volte face que a política de defesa europeia representou, com destaque para o rearmamento alemão, inscrevem-se numa sequência lógica e natural da mudança de contexto que a jogada de Putin implicou. Bem podem as boas almas do PCP e do Bloco de Esquerda insurgirem-se contra os tempos de militarização acrescida que vamos enfrentar e Fernando Rosas mostrar-se assustado com o rearmamento alemão, apoiando-se nas lições da história. Estas boas almas parece não terem ainda percebido ou não querem perceber que Putin introduziu uma séria disrupção na história cujos ensinamentos essas boas almas querem agora invocar. Os conceitos de neutralidade e de estratégia defensiva passaram a adquirir um significado radicalmente diferente. Ao pé da União Europeia mais a leste existe hoje declaradamente um projeto pessoal, autocrático e sanguinário de reabilitação da lógica imperial russa. Esse projeto não consiste apenas num regresso imaginário a outros tempos, reabilitando figuras sinistras como Ivan, o Terrível e apoiando-se em filósofos que teorizaram o que de pior e de purificação poderemos à alma russa dos czares. A invasão da Ucrânia mostrou que não se trata de uma questão para ser estudada em jogos de guerra. Pelo contrário, é uma ameaça que foi concretizada, não me interessa por agora saber se mal calculada, mal informada por inteligência incompetente ou simplesmente de concretizar em vida um projeto imperial.

Este sábado, enquanto jantava em casa de amigos próximos, apercebi-me de um programa na CNN Portugal de grande qualidade que mostrava como nos anos da sua instalação no poder, que terei de rever, mas que trazia importantes elementos de reflexão. Com uma promiscuidade assinalável entre influência política e conluio com a força de mercenários Wagner, o documentário mostrava como em troca de oferta de condições de segurança em conflitos em países de autocratas em convulsão e com fortes dotações de recursos naturais Putin selou imensos acordos estruturados na lógica mais simples – proteção contra movimentos indesejáveis por negócios de exploração de recursos e outros com a sua clique empresarial mais próxima. E, dizia a CNN, sem perguntar a esses autocratas pelas condições de recursos humanos e outras liberdades. Os exemplos da República Centro Africana, a Líbia, o Azerbeijão e a própria Síria mostraram uma similitude de métodos: intervenções violentas e destrutivas para assegurar tal proteção, negócios em contrapartida, influência política assegurada. Putin parece pela força militar ter conseguido o que por via do financiamento a China está também a conseguir em alguns países africanos e asiáticos. Assim, o isolamento e a desconexão da Rússia de Putin são uma meta possível em relação ao ocidente, mas isso não significa anulação imediata dos diferentes acordos político-militares que terá conseguido, designadamente em África.

Sucedem-se as interpretações sobre que condições de negociação pode a Rússia estar interessada em promover e também sobre os conceitos e conteúdos da neutralidade que a Ucrânia de Zelensky poderia aceitar discutir. Parece-me que essa via é pura especulação, tanto quanto a bizarra ideia nos últimos dias divulgada de uma Ucrânia partida em duas, com alteração dos pontos de cardeais de referência em relação ao modelo das duas Coreias. O que eu vejo neste entramado é um impasse gigantesco, que se torna tanto mais enredado quanto mais se confirmarem as dificuldades reais das forças russas em avançar e tomar posições relevantes no terreno.

A agudização deste impasse tem duas ocorrências associadas. Por um lado, impasse significará sempre sofrimento atroz por parte dos Ucranianos. Por outro lado, o impasse tornará cada vez mais claras as impossibilidades objetivas do Ocidente avançar decisivamente na ajuda aos Ucranianos. Compreende-se que são cada vez mais longínquas as possibilidades de um embargo europeu, essencialmente alemão, às importações de gás e petróleo russo e assim cortar uma das grandes fontes de financiamento da guerra por parte do regime de Putin. A combinação destas duas consequências tenderá a provocar fissuras no modo como os Ucranianos passarão a ver a ajuda ocidental. E isso não é boa notícia.

A única esperança parece ser a de que o trágico sofrimento dos Ucranianos na sua resistência heroica e a cada vez maior incapacidade russa de marcar posição no terreno conduzam as partes a vislumbrar condições de recuo e de salvamento das respetivas faces que racionalmente ninguém antevê, pelo menos entre os analistas menos rebuscados. Porque a minha invocação da ideia de impasse é precisamente por isso – não vislumbrar condições de recuo que admitam a possibilidade de uma negociação séria que comece por um cessar fogo inequívoco e alguns dias para operações humanitárias em grande escala.

Gostaria de estar mais otimista neste início de uma nova semana. Mas a análise fria e objetiva do que nos é transmitido conduz-me apenas à ideia de impasse.

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