(A interpretação do dia de hoje na evolução da guerra na Ucrânia atingiu níveis de complexidade elevada, sobretudo pela densidade e variedade de narrativas que foram sendo assumidas pelos diferentes órgãos de comunicação social. Tivemos uma batalha de imagens, num pingue-pongue dramático entre remissões para o teatro físico da guerra e imagens da avalanche de refugiados que vão engrossando as fronteiras com a Polónia, Eslováquia, Roménia e Hungria. Nesta batalha de sinais televisivos destaco a praticamente em direto imagem do ataque russo à torre de comunicações de Kiev (link aqui) e a sinceridade da sóbria e competente Teresa Dimas na SIC Notícias quando dava conta do dilema que estava a sentir naquele momento em que estava a receber imagens trágicas e violentas de Kharkiv e não as podia distribuir imediatamente dada a necessidade de as preparar para efeitos televisivos …).
Mas o dia de hoje é também marcado por uma série de outros acontecimentos marcantes do ponto de vista da formação das narrativas dominantes sobre o conflito.
Tivemos o empolgado discurso de Zelensky na sessão extraordinária do Parlamento Europeu, onde ficou ainda mais claro, como se já não fosse suficientemente claro para qualquer pessoa com um mínimo de inteligência e sensibilidade, o pedido desesperado de ajuda do líder ucraniano. O conforto, a solidariedade e a retórica da ajuda já não chegam. O choque terrível avizinha-se e o que Zelensky nos diz é simplesmente isto, ajudam-nos no teatro de guerra ou estamos entregues à nossa sorte?
Tivemos a espantosa interpelação de uma jornalista ucraniana a Boris Johnson (link aqui), magicamente transformado em homem de Estado, confrontando-o com o drama de quem vive o conflito na posição de país agredido e com desproporção de meios de defesa face à envergadura do ataque.
Tivemos ainda o registo frio e tipicamente russo do ministro da Defesa russo Sergey Shoygu, sempre fiel à narrativa de uma intervenção especial e seletiva em território ucraniano, ao mesmo tempo, soubemo-lo hoje também, que começam a ser silenciados os órgãos de comunicação independentes que procuram dar ao povo russo uma imagem real do que as forças russas estão a fazer na Ucrânia e as imagens do longo comboio de material bélico e de combate em direção a Kiev são o oposto de uma intervenção seletiva.
A narrativa construída em torno da espantosa heroicidade e resistência identitária do povo ucraniano serve naturalmente a preocupação das autoridades ucranianas em motivar as suas forças e a onda de voluntários que se apresentam para defender o seu país. Mas essa mesma narrativa quando é perspetivada do lado do ocidente adia obviamente a confirmação de uma desigualdade de forças e o muito provável esmagamento que essa desigualdade irá potenciar.
Temo sinceramente que a narrativa que a Teresa Dimas da SIC Notícias tinha diante dos seus olhos com as imagens não trabalhadas que chegavam de Kharkiv e que não podia transmitir a frio suplante nos próximos dias a da heroicidade da resistência.
Mas nesta batalha de narrativas, há uma outra evidência que começa a perfilar-se e não estou a falar do modo do Boris Johnson tem cavalgado a onda para se aguentar na governação. Estou antes a falar no comportamento aparentemente exemplar no acolhimento de refugiados das democracias iliberais da União Europeia que ameaçavam perturbar os equilíbrios democráticos na União. Polónia e Hungria, sobretudo, e também em menor grau a Eslováquia davam sinais já há algum tempo de forte degenerescência dos seus sistemas democráticos, causando à União Europeia graves problemas. Ora, pelo menos até agora e segundo o que se vai lendo e vendo a partir dos jornalistas situados nas fronteiras com a Ucrânia, esses países têm sido exemplares na generosidade do acolhimento e na solidariedade manifestada no terreno. Tudo indica que o ódio à Rússia pelos muitos anos de ocupação soou mais alto do que as derivas da democracia iliberal.
Curiosamente, andava nos últimos tempos a ler uma obra de Geneviève Duché (2022), publicada pela L’Harmattan (link aqui) cujo título é: “Illibéralisme et repli identitaire en Europe Centrale – un défi pour l’Union Éuropéenne”. O meu objetivo era tentar compreender melhor a formação daquela deriva nessas sociedades, que têm explicações diferenciadas entre a Polónia e a Hungria. A vertigem dos acontecimentos ultrapassou a minha leitura e, em plena crise humanitária, a capacidade solidária de acolhimento dos refugiados ucranianos e o estabelecimento de canais de passagem para outros destinos são das poucas coisas positivas dos últimos dias e permitem, pelo menos por agora, construir uma imagem mais positiva desses países.
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