domingo, 6 de março de 2022

LEITURAS CRUZADAS DE FIM DE SEMANA

 


(Uma sensação pesada abate-se sobre nós quando percorremos os diferentes canais de informação do cabo e se salta de página para página dos jornais internacionais de referência com emissão de notícias a partir dos locais de guerra. Esse peso tem uma explicação simples. Estamos numa insanável contradição. Ajudar militarmente no local a desprotegida Ucrânia ou aceder ao seu pedido de criação de uma zona de exclusão aérea sobre o território ucraniano equivaleria a escalar o conflito e experimentar a Terceira Guerra Mundial. A sensação pesada significa frustração, impotência e culpa. Mas receio que o tenhamos que internalizar para todo o sempre. O propósito de desconexão total da Rússia de Putin do mundo, por todas as vias que estão a ser exploradas, produzirá efeitos em câmara lenta, tanto mais lenta quanto mais a repressão interna for limitando os danos. Não é porém um processo sem réplica. Putin irá tentar recrear as suas próprias conexões, virar-se provavelmente para os lados da China, apesar das diferenças de poderio económico. Mas o problema é que enquanto estas medidas vão fazendo o seu caminho, os Ucranianos sofrem, morrem, são dilacerados pela separação, vêm o seu país destruído nas suas infraestruturas básicas. Para aliviar este peso e esta culpa, leio, leio, leituras cruzadas, tentando pelo conhecimento e pela racionalização aliviar o peso de fazer parte da contradição ocidental…).

O fim de semana trouxe-nos boas e variadas leituras. É impressionante e brilhante o conhecimento de muita gente, antes com quase nula exposição mediática e que surge nestes momentos com contributos válidos para compreendermos o âmago do que se passa para lá das narrativas que procuram controlar a comunicação do momento.

Francisco Bethencourt, Professor no King’s College de Londres, publicou uma crónica no Público de sábado (link aqui) que retoma o tema que considero central da obsessão de Putin, reconstruir a Grande Rússia. O seu texto é crucial para compreender o contexto que conduziu à União Soviética e depois à sua desagregação: “(…) A história da Ucrânia sob a União Soviética deve ser tida em conta, dada a política de relativa autonomia advogada por Lenine que Putin agora lamenta e foi classificada por Terry Martin como um exemplo de ação afirmativa de império, que promoveu a construção de nacionalidades multiétnicas em troca de lealdade em relação ao centro. Procurava-se a diferenciação face à russificação czarista. Foi só a partir de 1936 que a centralidade russa foi reafirmada, a apr da projeção do povo soviético, mas não obliterou o investimento no caráter multinacional da União Soviética”. É em clara oposição a este princípio que Putin revê a história a seu belo prazer e o texto de Bethencourt parece-me essencial porque foi dos únicos a interpretar o discurso de Putin de 21 de fevereiro.

No mesmo jornal, José Pacheco Pereira assina um dos seus melhores artigos dos últimos tempos (link aqui), movimentando-se como peixe na água no seu mundo de profundo entendimento e pesquisa sobre o PCP. A cegueira do partido é tal que não consegue ver que o objetivo de Putin está já muito para lá da URSS, que continua presente na ideia estratégica do PCP de que sem a sua existência o capitalismo americano perde oposição. O diagnóstico de JPP é contundente sobre a posição do PCP: “É uma posição mecânica que deriva de uma análise rudimentar, essencialmente geopolítica e que pouco tem que ver com a realidade. E uma análise geopolítica não é uma análise marxista …”. É uma tragédia ver um partido à procura, internacionalmente falando, de uma história que não existe. Mas o artigo é também relevante na compreensão da real Ucrânia, dos perigos que advêm dos núcleos de extrema-direita aí existentes e alguma endemia de corrupção, mas que não se confunde e não apaga o sentido profundo do que se combate hoje naquele país: “Mas a condição para se ser uma democracia e manter a liberdade, essa, sim, é um combate que se trava na Ucrânia. Soberania, independência, liberdade são coisas que vêm em pacote e que muitas vezes abrem caminho à democracia”.

Noutro lado, a New York Review of Books recupera um artigo de Timothy Snyder de 2018 (link aqui), segundo o qual é feita uma inquietante investigação sobre a que pode ser uma importante influência de pensamento sobre Putin. Essa influência é atribuída a um filósofo deportado pela revolução de 1917, Ivan Ilyin: “Nascido em 1883, terminou uma dissertação sobre o falhanço mundial de Deus justamente antes da Revolução Russa de 1917. Foi deportado para for a da sua terra natal em 1922 pelo poder soviético que desprezava, abraçou a causa de Benito Mussolini e completou uma apologia da violência política em 1925. No exílio alemão e suiço, escreveu nos anos 20 e 30 para os brancos russos no exílio que tinham saído do país na guerra civil Russa e nos anos 40 e 50 para os futuros russos que veriam o fim do poder Soviético”. Embora o pensamento de Ilyin tivesse evoluído para uma espécie de totalitarismo religioso, Snyder vê no autoritarismo cleptocrata de Putin algo de influenciado por aquele pensamento, sobretudo nos aspetos de justificação da violência. Em 2005, alguns anos depois de aceder ao lugar de primeiro-Ministro ainda com Yeltsin, “Putin começou a citar Ilyin nas suas alocuções à Assembleia Federal da Federação Russa, e procedeu de modo a trazer os restos mortais do filósofo para a Rússia. Então Surkov começou a citar Ilyin. O homem da propaganda aceitou a idea de Ilyin de que “a cultura russa é a contemplação do todo” e sintetiza a sua propria obra como a criação de uma narrativa de uma Rússia inocente rodeada de hostilidade permanente. A inimizade de Surkov para com os factos é tão profunda como a de Ilyin e como este tende a encontrar bases teológicas para tal. Dmitry Medvedev, o líder do Partido político de Putin recomendou a leitura dos livros de Ilyin aos jovens Russos. Ilyin começou a integrar os discursos dos líderes dos domesticados partidos de oposição, os comunistas e os (designados imperfeitamente de extrema-direita) Liberais Democratas. Nestes últimos anos, Ilyin foi citado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros e pelos patriarcas da Igreja Ortodoxa Russa”.

Simplesmente inquietante.

Haveria mais leituras cruzadas, designadamente sobre o que se passa do ponto de vista económico do lado Russo, mas isso fica para outros posts. O economista americano Adam Tooze tem estudado a situação e valerá a pena voltar a esses dados.

Sem comentários:

Enviar um comentário