(Kamakuyor - norte da Serra Leoa - New York Times)
(Quando se pensava no contexto das condições sanitárias prevalecentes na grande maioria dos países africanos e na falta de solidariedade do mundo ocidental e as consequentes dificuldades de atingir nesses países um nível de vacinação e proteção aceitável se tornaram visíveis, a comunidade internacional temeu o pior em termos de incidência da pandemia. Mais do que dois anos passados, algumas dessas más expectativas confirmaram-se em países que dispunham das melhores condições sanitárias possíveis em África, como, por exemplo, a África do Sul. Mas, o que pode ser considerado um mistério ou então o resultado absurdo da impossibilidade de medida dos efeitos, emergem alguns casos em determinados países que a ciência não conseguiu ainda plenamente explicar. A Serra Leoa é um desses casos, tendo em conta sobretudo os reais ou falsos resultados em termos de baixa mortalidade por COVID…)
Quando nas minhas aulas de desenvolvimento económico discutia com os alunos as relações entre o nível de desenvolvimento humano segundo medida da ONU e os níveis de pobreza absoluta dos países, a Serra Leoa aparecia sempre na cauda da tabela dos respetivos indicadores. Implicitamente, quando antecipei o efeito devastador que o SARS COV-2 poderia provocar nos países africanos, recordava-me sempre do caso da Serra Leoa, sobre o qual fui recolhendo para essas mesmas aulas evidência empírica para tentar compreender essa estranha sensação de que o progresso e o conhecimento, por mínima expressão que tivessem, estavam ausentes desses países.
Ora, embora a invasão da Ucrânia tivesse afastado dos radares da comunicação social a dimensão global e devastadora da pandemia, vão surgindo notícias sobre dimensões da sua incidência que a ciência continua a não explicar de forma robusta e rigorosa.
E, curiosamente, o exemplo da Serra Leoa emergiu nesses radares mais seletivos da pandemia, não pelas piores razões que antecipáramos, mas por razões misteriosas, das tais que a ciência não consegue ainda explicar. O país é apontado como um exemplo de país em que o vírus parece mostrar-se menos virulento, com baixas taxas de mortalidade COVID em termos comparativos com outros países africanos, como, repito-me, a África do Sul.
Como é sempre recorrente neste tipo de países, e na recolha da evidência atrás referida isso estava sempre a revelar-se, países como a Serra Leoa parecem sempre de um efeito de suspeição que penaliza enormemente as suas políticas públicas, por mais inexpressivas que elas sejam. Fenómenos como este, o da comparativamente baixa mortalidade COVID, são sempre explicadas à cabeça por dificuldades logística de medida rigorosa dos acontecimentos. A nossa desapiedada perceção sobre esses países começa, à partida, por imaginar que, entregues à sua sorte, não são capazes de registar incidências de crises sanitárias e nem sequer de contabilizar os seus mortos. Também aqui circula essa explicação. As baixas taxas de mortalidade COVID não seriam para levar a sério.
Os valores encontrados de percentagem de população com anticorpos são muito elevados (estudos apontam para mais de 70% na Serra Leoa) e as taxas de vacinação não chegam a atingir 20%, o que coloca a questão: problemas de medição e baixíssima testagem ou algo mais profundo estará a justificar os números encontrados?
Mas, felizmente, há cientistas e profissionais nativos que, sem ignorar a necessidade de descontar essas insuficiências, vão mais fundo e tentam encontrar razões plausíveis para explicar essa aparente proteção divina para com os mais fracos e desfavorecidos. Se pensarmos, por exemplo, em variáveis como a juventude da população (valores que nós, ocidentais envelhecidos, já deixámos de poder sentir como possíveis) e também nos elevados valores da temperatura média, intuímos que pode haver condições concretas locais que possam eventualmente explicar os tais valores de suposta baixa incidência e baixa mortalidade. A variável juventude significa que a população desses países não teve ainda tempo de contrair as morbilidades que tornam letal a exposição ao COVID-19.
Mas há outras variáveis interessantes a ter em conta: a baixa densidade de grandes partes do território e o hábito ancestral de vida no exterior são variáveis de contraponto relevantes e podem explicar condições favoráveis a uma menor disseminação. E há ainda outra razão possível que radica na elevadíssima exposição destes países a outros vírus e infeções (Ébola à cabeça) e sobre as quais pouco se sabe sobre a possibilidade dessa incidência ter efeitos colaterais positivos reduzindo a incidência do SARS COV-2 por via da proteção (aos que não morreram) que terão induzido.
O que me interessa destacar nesta questão (se for um fenómeno real melhor para os africanos que dele podem beneficiar) é a profunda penalização que o absurdo ou paradoxo aqui envolvido pode provocar na alocação dos recursos para as políticas públicas. A escassez de recursos para as políticas públicas é conhecida (não é esta a altura certa para a explicar) e exige, por isso, que as opções assumidas assentem em escolhas sólidas. Vejam o ingrato da questão. Se a menor incidência do COVID-19, por exemplo, for real e não significativamente determinada por insuficiências de registo e medida, então procurar atingir taxas de vacinação elevadas em linha com as do Ocidente pode ser uma escolha errada. Estaremos a alocar demasiados recursos públicos a uma realidade que mais ou menos naturalmente não a exigiria. Se, pelo contrário, o não registo de infeções e mortes for quantitativamente muito importante, então as políticas públicas andarão às cegas. Como todos sabemos, as políticas públicas são cada vez mais baseadas na evidência (evidence-based).
O New York Times em edição internacional (link aqui) faz eco deste exemplo misterioso da Serra Leoa. Vários profissionais de saúde entrevistados nesse país referem que seria impossível, mesmo com grosseiros problemas de medida do número de mortos, ignorar o alarme e expressão social desse fenómeno. Assim também seria difícil que tudo acontecesse sem uma sobrelotação dos hospitais públicos e, sobretudo após o surto de Ébola que terá vitimado cerca de 4.000 pessoas entre 2014 e 2016, a vigilância com processos virais está presente. Seria assim muito difícil que uma incidência não registada escapasse ao radar das autoridades. E nem sequer o recurso a variáveis indiretas, de gosto duvidoso mas eficazes, como a evolução das receitas de casas mortuárias reflete essa incidência não registada.
Vejam a angústia das escolhas que se abrem às autoridades sanitárias destes países. De facto, países também jovens, com altas temperaturas e sob outras pragas virais tiveram elevada incidência e muito elevada mortalidade. Por isso, os profissionais e cientistas mais prudentes não desistem dos seus objetivos de vacinarem a maior percentagem possível de população. E talvez tenham razão. A ajuda ocidental talvez não deva ignorar essa prudência e torná-la realidade.
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