segunda-feira, 14 de março de 2022

ENTREVISTAS E ESPECIALISTAS RUSSÓFILOS

 



(Estamos num período em que por razões compreensíveis se procura mobilizar o conhecimento de quem tem coisas para dizer sobre a Rússia e acumulou conhecimento sobre o seu desabrido autocrata. E aqui é necessário evitar o mais possível patetas do tipo “apanha a bola com o peito”, inchados pela oportunidade do momento. Exemplifico. Não vale a pena perder tempo com idiotas como os Alexandres Guerreiros deste mundo, a que uma precipitada CNN Portugal dá eco e guarida. Deliciem-se com o personagem. Cá por mim tenho seguido o filão das grandes entrevistas, sobretudo a partir de quem as pensa e as concretiza mas também seguindo a intuição da obra de quem é entrevistado. Foi o caso no post de ontem de Ezra Klein que entrevistou Masha Gessen e recorro hoje a uma outra personagem incontornável do jornalismo americano, David Remnick e ao lastro da New Yorker, que entrevista Stephen Kotkin. Entrevistas que valem por milhares de exemplos de perda de tempo, produtos estragados, fraudes autênticas. Sempre me dei bem com este critério. E quanto mais o aplicamos mais ficamos com aquela intuição de que isto cheira a produto estragado. A metáfora é só para recordar o Kunami fresquinho dos Gatos Fedorentos no seu melhor. Sem qualquer ponta de humor, temos hoje televisões a vendermos Kunamis fresquinhos de especialistas quando o conhecimento é podre …)

De David Remnick já não vale a pena falar. Os seus escritos falam por si e a New Yorker podem dela dizer o que quiserem sobre o seu pretenso snobismo nova-iorquino que isso não apaga a qualidade do que nela se faz.

Quanto ao historiador de Princeton Stephen Kotkin talvez valha a pena situar o personagem, pois é menos conhecido. Designei-o de especialista russófilo, não no sentido de admirador acrítico da cultura e da história russa, mas como um dos grandes historiadores do nosso tempo que estudou e biografou o tempo histórico russo a partir das biografias de personalidades como Estaline. Os dois volumes, “Paradoxes of Power – 1878-1928” e “Waiting for Hitler – 1929-1941” são talvez as suas duas obras mais conhecidas, das quais não consigo situar uma tradução portuguesa (que me perdoem os editores acaso elas existam). Espera-se um terceiro volume que ainda não foi publicado.

Nunca tendo sido biógrafo de Putin, o seu conhecimento da continuidade histórica da Rússia coloca-o em posição favorável para um comentário sobre o que se passa de trágico hoje na Ucrânia e sobre o véu que paira sobre o centro do regime em Moscovo. Em maio/junho de 2016, a Foreign Affairs publicou um artigo de Kotkin que de certo prefigurava algo do que acabou por verter para a entrevista com Remnick. O artigo chamava-se “Russia’s Perpetual Geopolitics - Putin Returns to the Historical Pattern” e percebem aonde quero chegar.

Na entrevista Kotkin é muito expressivo relativamente a isso: “A Rússia é uma civilização notável: nas artes, música, literatura, dança, cinema. Em todas as esferas, é um lugar profundo e notável – uma civilização mais do que apenas um país. Ao mesmo tempo, a Rússia pensa que tem “um lugar especial” no mundo, uma missão especial. É a ortodoxia de leste, não Ocidental. E quer apresentar-se como um grande poder. O seu problema nunca foi esse sentimento de ser ou identitário, mas antes o que que as suas capacidades nunca estiveram à altura das suas aspirações. Está sempre em luta para erguer essas aspirações, mas não consegue, porque o Ocidente foi sempre mais poderoso. A Rússia é um grande poder mas não o grande poder”.

Kotkin é um crítico acirrado dos que interpretam a expansão da NATO para leste como a causa de todas as ofensivas de Putin(1): “Não se trata de um desvio face a um padrão histórico. A via existia antes da existência da NATO – no século XIX já tinha este padrão: tinha um autocrata. Tinha repressão. Tinha militarismo. Suspeitava dos estrangeiros e do Ocidente. É a Rússia que conhecemos e não é uma Rússia que tenha chegado ontem ou nos anos 90. São processos internos na Rússia que explicam o que hoje se passa”. E o problema é que nesse padrão se observa uma outra confluência, a da mistura do Estado russo com um poder pessoal, que se transformou muitas vezes em despotismo, não necessariamente iluminado. E somos reconduzidos ao regresso da história, ao mesmo tempo que o novo poder pessoal procura reescrever a história a seu belo prazer, inventando uma outra Ucrânia, bastante diferente daquela que a suas forças encontraram no terreno.

A talhe de foice (perdoem a metáfora) para descrever a guerra como um erro de cálculo, Kotkin invoca um facto histórico do qual já me tinha esquecido. Quando Brezhnev invadiu em agosto de 1968 (a chegada dos tanques) a agora República Checa para demover Dubček de acolher o chamado “socialismo de rosto humano”, aparentemente o objetivo era substitui-lo por um fantoche. Chamado a Moscovo, o político checo acabou por regressar e ficou no poder até 1969 talvez devido à dificuldade de encontrar o tal fantoche de substituição, embora em parte assumido pelo Dubček que regressou. Os erros de cálculo ter-se-ão projetado para o presente, não só na errada antecipação da coragem e resistência dos Ucranianos e do seu líder, mas igualmente na precoce interpretação de que o Ocidente estava entregue à bicharada. E o velho problema é sempre o do que os erros de cálculo complicam as retiradas estratégicas.

Mas os aspetos mais profundos da entrevista estão nos alertas que Kotkin nos deixa quanto ao tempo de confirmação de uma velha ideia de que os despotismos tendem a cavar a sua própria desagregação. A velha ideia da “ponte de ouro” (invocada por Sun Tzu, teórico da guerra chinês para dar condições de retirada ao inimigo) emerge na Ucrânia como um dos grandes riscos de escalamento do conflito para cá das fronteiras da Ucrânia. Quanto mais difícil for a identificação de uma saída, mais provável é a destruição de um grande número de cidades ucranianas. Mas a desagregação do regime pode ser lenta, mesmo que as sanções consigam quebrar o relacionamento entre o núcleo militar restrito e os macroeconomistas do Kremlin. Ainda que Putin venha a enfrentar a impossibilidade de uma ocupação integral da Ucrânia e apesar da sua vitória no terreno poder avançar mais ou menos lentamente, não é fácil antecipar de que modo essa realidade poderá conduzir a fissuras e deserções no seu núcleo central.

A ironia trágica de tudo isto é que a resistência e bravura ucranianas estão numa luta desigual contra o tempo. O tempo da violência e da destruição é mais rápido do que o da erosão do poder no Kremlin.

(1) Por estes dias, foi muito recordado o nome do diplomata americano  George F. Kennan um especialista dos tempos da Guerra Fria e um especialista do equilíbrio em tensão que foi possível então alcançar.

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