segunda-feira, 7 de março de 2022

GUERRA E DESCARBONIZAÇÃO

 

(Sempre achei que os principais desafios não vinham do estabelecimento de consensos possíveis para fixar objetivos de combate às alterações energéticas, mas fundamentalmente dos que podiam ser antecipados para uma transição energética consequente. Aliás, a vulgata do planeamento estratégico consiste, regra geral, numa orgia de objetivos estratégicos para os quais não se define, quase sempre, uma estratégia de transição para transformar o contexto de partida. Tenho lutado pessoalmente contra esta vulgata, mas nem sempre é possível obter o consentimento dos atores envolvidos. A explicação é simples: os objetivos são entidades mais ou menos abstratas, ao passo que as mudanças do contexto de partida para os atingir são dolorosas. Estava longe, porém, de imaginar que essa transição energética iria ser ainda mais complexa por força de uma guerra, estúpida e com riscos de forte aceleração …).

A guerra na Ucrânia trouxe-nos uma alteração brutal das condições para uma transição energética que aponte decisivamente para a descarbonização das economias, simplesmente para mitigar o peso dos efeitos de descontrolo que a emergência climática irá determinar. O gás natural, dado o posicionamento sensato assumido por um grande número de países relativamente ao nuclear, representa um ativo relevante para minimizar custos de adaptação à desejada transição energética de descarbonização. A posição de desafio despudorado com que a Rússia de Putin afrontou o ocidente jogou no efeito de dependência que a Europa foi assumindo com complacência preguiçosa e comprada pela ganância relativamente à oferta de gás natural russo. A Alemanha de Scholz tomou a dianteira rompendo com o Nordstream 2. Com esse abandono, colocou-se deliberadamente perante a necessidade de encontrar alternativas a curto prazo para encurralar os russos no seu afrontamento. Essa adaptação a um padrão mais diversificado de oferta de fontes de energia e de gás natural em particular sofreu uma importante aceleração. Nessas condições, todas as opções que se colocavam em matéria de escolha de alternativas, tais como intensificação de renováveis, viabilidade do hidrogénio, condições de armazenamento de energia e outras estão agora perante cenários de aceleração que a guerra veio impor.

Certamente que os amantes do nuclear e da sua pretensa característica de energia limpa (claro que o armazenamento de resíduos é regra geral esquecido nessa equação) irão aproveitar para jogar a sua cartada. O problema é que será difícil manter o sangue frio para essas escolhas no novo ambiente de instabilidade bélica que vai atravessar o mundo nos próximos tempos. Ou seja, nunca imaginei que a transição energética iria evoluir paredes meias com a mais intensa geopolítica, mas é isso que iremos ter pela frente. O que me leva à recordatória de outros dos desafios regra geral ignorados ou pelo menos negligenciados, o da alteração dos modelos de consumo. A transição energética tem custos que nós, cidadãos demasiado habituados ao conforto, temos de estar preparados para os suportar. Comparado com o preço que os Ucranianos estão e irão pagar pela defesa da sua liberdade os nossos custos são uma brincadeira.

Nota final

O Público publicou muito recentemente dois documentos de grande qualidade, honrando a sua posição como um jornal atento e pedagógico em matéria de transição climática e energética.

A sua edição especial para comemorar o 32º aniversário, com edição de Catarina Mota, como Diretora convidada, é um grande documento, que honraria qualquer jornal de excelência.

E no P2 de domingo, aquele que considero um dos últimos intelectuais portugueses, António Guerreiro dá uma entrevista notável sobre o tema da crise climática.

Recomendo vivamente a sua leitura.

(Correção de diversos erros em 08.03.2022).

 

 

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