(“Tudo Recomeça” é um disco marcadamente simbólico. É uma espécie de reinvenção da própria Aldina e de alguns dos seus fados, quase dois anos depois de estar impedida pandemicamente de cantar na sua Casa de Fados de sempre, o Sr. Vinho. Há releituras, há Manuel Cruz, Maria do Rosário Pedreira, José Mário Branco, Manuela de Freitas, João Monge, do melhor que temos e, cada vez mais, Aldina é aquela voz e sobretudo aquela personalidade que nos reconcilia com o fado, capaz de dialogar com a tradição e, simultaneamente, transportá-lo para um outro plano de criatividade e inovação. E há sobretudo um impressionante ELA a marcar todo o disco com a sensibilidade do Manel Cruz dos Ornato Violeta. Afinal de contas, “Ela não aprende a ser outra – É só isso – Sempre foi”. Um grande exemplo de poema e de música que vivem para Aldina.)
Foi nalgumas crónicas do saudoso Eduardo Prado Coelho que descobri a curiosidade e depois a necessidade de ouvir Aldina Duarte, agora simplesmente Aldina. Os textos do EPC despertavam para muita coisa, mas que me recorde, muito tempo já passou, nunca praticamente em termos musicais. A vivência que Aldina mantinha com alguns meios intelectuais e políticos de Lisboa terão porventura suscitado essa leitura do ensaísta eterno e a partir daí nunca mais parei. Sempre me impressionou a fixação de influência que Aldina Duarte mantinha em relação a Beatriz da Conceição e todos sabemos a análise crua e viperina que a fadista fazia das modernices no fado. Num post de 2012, há tanto tempo que me transporto neste blogue, comentei uma espantosa entrevista da incontornável Tia Bia a Anabela Mota Ribeiro, a qual por vias interpostas me ajudou a compreender a fixação de influência que Aldina manifestava em relação aquela fadista e ao peso que teve na sua vida ouvi-la cantar pela primeira vez.
Cada disco de Aldina é uma laboriosa construção de um artefacto artístico. Foi quase sempre assim com praticamente toda a sua obra. A carga deste “Tudo Recomeça” é muito bem explicada no longo artigo que Gonçalo Frota escreveu para o IPSÍLON de 10 de março de 2022. Aldina fala de uma espécie de revelação da eternidade do fado após a pandemia, que a afastou dos seus 25 anos de atuação diária no Sr. do Vinho e percebemos como um afastamento dessa natureza pode impactar uma personalidade como a sua. O reencontro com o público, “aqueles eram fados de uma pulsação comum, de um assomo de vida no meio de um cerco à existência coletiva” acaba por rodear este disco de uma ambiência ímpar em toda a sequência de belos discos com que nos tem presenteado.
Mas a música que abre o disco e que o atravessa pois dificilmente nos esquecemos do seu efeito á medida que ouvimos as restantes, ELA, é do melhor que tenho ouvido e o Gonçalo Frota explica-o com tanta clareza que vale a pena citá-lo:
“Pela segunda vez na sua discografia, Aldina dá voz a um tema inédito composto à sua medida por Manel Cruz. Em Quando se Ama Loucamente (2017), era já esse o tema chamado para iluminar o restante álbum, uma canção cujo magnetismo criava diálogos com a obra de Maria Gabriela Llansol e ajudava a contar o seu luto amoroso; agora, o retrato da fadista que o homem dos Ornatos Violeta assina em Ela parece resumir tudo aquilo que Aldina é no seu fado: simultaneamente clássica e contemporânea, totalmente do fado tradicional mas também da sua renovação, alguém que vive os versos por dentro e os torna matéria incandescente, sem necessidade de gritar para provar que está viva. Ouvimo-la como num ponto de intersecção entre Marceneiro e Joni Mitchell, entre Beatriz da Conceição e Nick Cave. E nas palavras de Manel Cruz, canta-se ao espelho dizendo que “Ela não aprende a ser outra / é só isso, sempre foi”.
Assim, também o belo texto que Gonçalo M. Tavares assina na bela roupagem do CD (quem escolhe companhias destas tem de ser uma Mulher de grande expressão), do qual recupero o parágrafo final:
“Aldina. Ela não aprende a ser outra. Como alguém que de novo se perdeu para de novo encontrar um novo sítio. E de novo encontrou – é substância densa”.
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