quarta-feira, 26 de setembro de 2012

MAIS UMA TRAPALHADA



Não discuto o propósito do Governo em reequacionar a sua intervenção e financiamento em fundações, qualquer que seja o objeto da sua atividade, adaptando ou anulando a sua presença em função do novo contexto de financiamento a que o setor público está submetido. Penso que ninguém com uma mínima perceção dos condicionalismos financeiros que pesam sobre a atividade do Estado deixará de compreender esse propósito, sobretudo num contexto em que para além dos cortes salariais na função pública o governo tem dificuldade em dar provas de uma política consistente de corte na despesa.
Mas, em manifesta sintonia com outras trapalhadas, a forma como o governo atacou a questão das fundações é bem ilustrativa do acosso a que está submetido e sobretudo da descoordenação que se vai observando entre os critérios do Ministério das Finanças e algum arremedo possível de racionalidade de escolhas na atividade governativa.
Na minha perspetiva, falta a esta abordagem, tal como acontece em outras intervenções que descambaram em trapalhada e descrédito para a prática governamental, uma boa compreensão do problema que esteve na origem desta multiplicação milagrosa de experiências de fundações.
Como modalidade de direito privado, e a multiplicação de fundações não é mais do que a manifestação de um fenómeno mais geral que é a fuga para o direito privado de muita coisa que deveria permanecer sob a alçada do direito público, a figura das fundações começou a ser adulterada, pasme-se, por iniciativas governamentais. E aqui o Partido Socialista não pode pronunciar-se com grande à vontade. Todos nos recordamos da Fundação para a Prevenção Rodoviária e da Fundação Magalhães. Pura fuga para o direito privado do que deveria ter escrutínio público e validação orçamental. Ou seja, por estranho que possa parecer, o próprio Estado participou na adulteração da figura jurídica. Para mim, uma fundação tem que ter por base um capital fundacional no seu núcleo central de justificação de existência. Não o tendo, estamos na mais pura engenharia institucional e, repito, em plena fuga para o direito privado, que muitos entenderam como fuga aos deveres da “accountability” que, em bom português, consiste na prestação responsável de contas. Ponto.
Por isso, não partilho o coro de chorosos arrependidos sobre os cortes a fundações. O problema não é esse. O problema é, antes pelo contrário, a ausência total de transparência no processo, a incapacidade de percebermos como cidadãos os critérios assumidos. Em primeiro lugar, porque o processo de recolha de informação que conduziu ao tratamento quantitativo, estou certo na mais sofisticada folha de cálculo, teve laivos de exercício “ranhoso”, ou seja atamancado. Em segundo lugar, porque tendeu a ignorar o essencial do problema: existe ou não um capital fundacional, existe ou não um serviço público prestado pela fundação X relativamente ao qual existe um vazio de oferta pública? Aparentemente, tratar-se-ia de sofisticação a mais para amanuenses com capacidade de corte. Em terceiro lugar, não entendo a razão pela qual o governo emite opinião e avalia fundações em relação às quais não existe presença como fundador do Estado. Nestes casos, a sua legitimidade acaba em assumir que não concede qualquer forma de financiamento público. Parece-me ser este o caso das fundações municipais. Qual é o interesse objetivo de recomendar a extinção de fundações nas quais o Estado não é fundador? Só o entendo como um atropelo sério à autonomia das Assembleias Municipais.
Aliás, a resolução do Conselho de Ministros publicada em 25 de Setembro no Diário da República tem a este respeito uma preciosidade. No número II do anexo III, a resolução propõe para a Região Autónoma dos Açores a extinção da Fundação Gaspar Frutuoso, a redução em 30% nos apoios à Fundação Engenheiro José Cordeiro e o cancelamento de utilidade pública à Fundação Rebikoff-Niggeler. Logo, a seguir, a resolução apresenta o despacho do Governo Regional que decide o contrário, a manutenção da primeira, a continuidade dos apoios à segunda e a manutenção do estatuto de utilidade pública à terceira. A isto chama-se autonomia regional.
Finalmente, um toque pessoal e afetivo nestas coisas. O projeto de extinção da Fundação Museu do Douro, nas condições de recuperação da sustentabilidade financeira em condições internas notoriamente difíceis e por isso com uma trajetória de adaptação bem sucedida aos novos tempos do financiamento público, aliás reconhecido pela avaliação realizada, constitui mais uma ilustração da ausência completa de seletividade e racionalidade de todo este processo. O esforço notável da sua Presidente em exercício, minha colega de trabalho Elisa Babo, em cargo não remunerado, liderando essa recuperação numa região fortemente atomizada, mereceria outra consideração pelo exercício de funções públicas. Imagino que todo este processo tenha sido conduzido por amanuenses sem comunicação alguma ao Secretário de Estado da Cultura. O homem diz-se que está doente. Mas se lhe resta alguma pinga de dignidade os seus eleitores mereciam algum pronunciamento da sua parte. Mais um caso de escritores com uma passagem inglória pela política.

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