Não discuto o propósito do Governo em reequacionar a sua
intervenção e financiamento em fundações, qualquer que seja o objeto da sua
atividade, adaptando ou anulando a sua presença em função do novo contexto de
financiamento a que o setor público está submetido. Penso que ninguém com uma mínima
perceção dos condicionalismos financeiros que pesam sobre a atividade do Estado
deixará de compreender esse propósito, sobretudo num contexto em que para além dos
cortes salariais na função pública o governo tem dificuldade em dar provas de
uma política consistente de corte na despesa.
Mas, em manifesta sintonia com outras trapalhadas, a
forma como o governo atacou a questão das fundações é bem ilustrativa do acosso
a que está submetido e sobretudo da descoordenação que se vai observando entre
os critérios do Ministério das Finanças e algum arremedo possível de
racionalidade de escolhas na atividade governativa.
Na minha perspetiva, falta a esta abordagem, tal como
acontece em outras intervenções que descambaram em trapalhada e descrédito para
a prática governamental, uma boa compreensão do problema que esteve na origem
desta multiplicação milagrosa de experiências de fundações.
Como modalidade de direito privado, e a multiplicação de
fundações não é mais do que a manifestação de um fenómeno mais geral que é a
fuga para o direito privado de muita coisa que deveria permanecer sob a alçada
do direito público, a figura das fundações começou a ser adulterada, pasme-se,
por iniciativas governamentais. E aqui o Partido Socialista não pode pronunciar-se
com grande à vontade. Todos nos recordamos da Fundação para a Prevenção Rodoviária
e da Fundação Magalhães. Pura fuga para o direito privado do que deveria ter
escrutínio público e validação orçamental. Ou seja, por estranho que possa
parecer, o próprio Estado participou na adulteração da figura jurídica. Para
mim, uma fundação tem que ter por base um capital fundacional no seu núcleo
central de justificação de existência. Não o tendo, estamos na mais pura
engenharia institucional e, repito, em plena fuga para o direito privado, que
muitos entenderam como fuga aos deveres da “accountability”
que, em bom português, consiste na prestação responsável de contas. Ponto.
Por isso, não partilho o coro de chorosos arrependidos
sobre os cortes a fundações. O problema não é esse. O problema é, antes pelo
contrário, a ausência total de transparência no processo, a incapacidade de
percebermos como cidadãos os critérios assumidos. Em primeiro lugar, porque o
processo de recolha de informação que conduziu ao tratamento quantitativo,
estou certo na mais sofisticada folha de cálculo, teve laivos de exercício “ranhoso”,
ou seja atamancado. Em segundo lugar, porque tendeu a ignorar o essencial do
problema: existe ou não um capital fundacional, existe ou não um serviço público
prestado pela fundação X relativamente ao qual existe um vazio de oferta pública?
Aparentemente, tratar-se-ia de sofisticação a mais para amanuenses com
capacidade de corte. Em terceiro lugar, não entendo a razão pela qual o governo
emite opinião e avalia fundações em relação às quais não existe presença como
fundador do Estado. Nestes casos, a sua legitimidade acaba em assumir que não
concede qualquer forma de financiamento público. Parece-me ser este o caso das
fundações municipais. Qual é o interesse objetivo de recomendar a extinção de
fundações nas quais o Estado não é fundador? Só o entendo como um atropelo sério
à autonomia das Assembleias Municipais.
Aliás, a resolução do Conselho de Ministros publicada em
25 de Setembro no Diário da República tem a este respeito uma preciosidade. No
número II do anexo III, a resolução propõe para a Região Autónoma dos Açores a
extinção da Fundação Gaspar Frutuoso, a redução em 30% nos apoios à Fundação
Engenheiro José Cordeiro e o cancelamento de utilidade pública à Fundação
Rebikoff-Niggeler. Logo, a seguir, a resolução apresenta o despacho do Governo
Regional que decide o contrário, a manutenção da primeira, a continuidade dos
apoios à segunda e a manutenção do estatuto de utilidade pública à terceira. A
isto chama-se autonomia regional.
Finalmente, um toque pessoal e afetivo nestas coisas. O
projeto de extinção da Fundação Museu do Douro, nas condições de recuperação da
sustentabilidade financeira em condições internas notoriamente difíceis e por
isso com uma trajetória de adaptação bem sucedida aos novos tempos do
financiamento público, aliás reconhecido pela avaliação realizada, constitui
mais uma ilustração da ausência completa de seletividade e racionalidade de
todo este processo. O esforço notável da sua Presidente em exercício, minha colega
de trabalho Elisa Babo, em cargo não remunerado, liderando essa recuperação
numa região fortemente atomizada, mereceria outra consideração pelo exercício de
funções públicas. Imagino que todo este processo tenha sido conduzido por
amanuenses sem comunicação alguma ao Secretário de Estado da Cultura. O homem
diz-se que está doente. Mas se lhe resta alguma pinga de dignidade os seus
eleitores mereciam algum pronunciamento da sua parte. Mais um caso de
escritores com uma passagem inglória pela política.
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