Escrevo ainda antes de haver fumo branco do Conselho de
Estado, mas a minha intuição é que, a haver fumo, ele será cinzento ou
simplesmente incolor. Gostaria de ser mosca para perceber se os conselheiros
passarão de papagaios de voz crítica a vozes domesticadas e politicamente
corretas, sem coragem para, olhos nos olhos, confirmar o que têm dito seja nas
suas plataformas de comentadores ou em simples respostas a interpelações jornalísticas.
Nestas condições, a minha atenção volta-se para Espanha,
laboratório futuro por excelência do que vão ser as relações governo central –
governos regionais em tempos de crise e esse é um tema que me interessa
vivamente.
Na última semana e não por acaso emergiram em Espanha dois
factos que mantêm entre si algum nexo – o ressurgimento parcial do rei Juan
Carlos e a tensão de um país nos limites com o esticar da corda nas relações
Madrid-Barcelona (políticas e não futebolísticas, entenda-se).
Nos últimos tempos, é conhecido que o monarca de 74 anos
desbaratou num ápice uma parte considerável do reconhecimento que lhe era
devido pelo seu papel na transição democrática e sobretudo na rejeição do golpe
militar de 1981. A sua viagem ao Botswana, para além do exotismo dissonante em época
de todos os sacrifícios para os espanhóis, surgiu aos olhos de muita gente como
uma reinvenção para os tempos modernos do “direito de pernada” de monarca
infiel às suas responsabilidades conjugais. O seu pedido público de desculpas
ao povo espanhol terá sustido a degradação da imagem mas alguns percalços que
se lhe seguiram (quedas, por exemplo) tornaram-se factos simbólicos dos dias
difíceis da monarquia espanhola. Os escândalos financeiros de Iñaki Urdangarín,
Duque de Maiorca e marido da Infanta Cristina acentuaram a trajetória
descendente, levando recentemente os “marketers” da família real a apostar na
imagem de Letizia para suster mais danos.
Ora, esta semana, o monarca tentou regressar ao seu papel
de concertador, procurando assumir-se como defensor último da unidade do Estado
espanhol e da Nação, mostrando-se obstinadamente crítico do surto de
independentismo que grassa pela Catalunha, adotando a web como via de comunicação.
Há, de facto, algum nexo de causalidade entre este
ressurgimento do monarca e a situação de um país nos limites, sobretudo devido à
incapacidade do governo de Rajoy em gerir a tensão catalã. Esta incapacidade
tem uma razão simples: não se trata apenas de defender a unidade da Nação e do
Estado; transparece dessa defesa a ideia de “vendetta” centralista contra os compromissos da transição política.
Por isso, o monarca pretende ocupar esse lugar, mas acho que chega tarde.
Hoje, no El País, Felipe Gonzaléz afirma que “à medida
que mais envelheço menos nacionalista me sinto”, defendendo claramente que a
melhor estrutura para o Estado espanhol é a federal, vista como a única solução
capaz simultaneamente de assegurar a coesão e o reconhecimento da divergência
determinada por razões objetivas como a língua.
Ideias lúcidas para uma situação complexa.
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