O fim de semana vai possibilitar uma longa meditação a
muito boa gente sobre o que o ressurgimento da Rua e das Praças significa e o
que isso vai implicar do ponto de vista das movimentações políticas intramaioria
e entre esta e a Presidência e a oposição.
Uma boa meditação exigiria algum silêncio e moderação. Mas,
pelo contrário, a algazarra de comentários, opiniões, confissões e simples murmúrios
está instalada. No meio de tanta algazarra, começa a ser possível o estabelecimento
de algumas tipologias. Se não houvera outras vantagens, há pelo menos uma, bem relevante.
Ajuda-nos a economizar o consumo de informação, pois para algumas dessas
tipologias não vale a pena consumir pestanas. Passa-se à frente.
Para já tenho organizado o meu radar de leitura de acordo
com as seguintes famílias.
Em primeiro lugar, emergem os ratinhos, ratões e até ratonas
que preparam o abandono do barco. Esta rataria esperou para ver, até simpatizou
com o estilo Passos (elas adoram-no), suportou o seu aparente populismo de se
querer confundir com o português normal. Muitos deles esperariam uma viagem um
pouco menos efémera, outros aguardam ainda alguma continuidade, mesmo que alquebrada
e a fugir para o moribundo. Com esta família, não vale a pena perder tempo de
leitura. Tenderão a existir sempre neste tipo de processos.
Um segundo grupo é o dos arrivistas. Os que
descobriram tarde que o mito da austeridade expansionista não passa disso. Começaram
por ser os mais punitivos, intérpretes das posições ferozes dos países do
Norte, anunciadores da catarse pela qual o povo português teria de passar para
poder abraçar uma via redentora. Hoje, recuaram. Ora porque nunca pensaram que
lhes tocaria, pensando-se a salvo dessa via punitiva. Ora ainda porque o grupo
dos que denunciam a ineficácia da via da austeridade “tout court” começa a engrossar e, nessas condições de companhia,
mudar de opinião começa a ser sedutor. É um grupo fortemente instalado na
comunicação social e nos jornalistas comentadores, mesmo que esporadicamente.
Entre este grupo e o dos que permanecem ou evoluem para posições
de lucidez, ontem despontou uma sub-família, incomodada com o risco de toda
esta movimentação de rua e de praça criar a miragem de que os riscos da
austeridade estariam afastados da sociedade portuguesa. Erro de perspetiva e
ainda não compreenderam nada. Não há, a meu ver, um português com dois dedos de
testa que não tenha compreendido que o consumo privado e o consumo/investimento
público têm de se ajustar a um contexto diferente. A sua participação massiva
nas manifestações de ontem não significa de modo algum ignorar ou fazer de
conta sobre essa necessidade. O que os portugueses hoje sabem com clareza é que
o modo iníquo, desigual, injusto e pouco transparente com que esse ajustamento
começou a ser elaborado e concretizado não é a única alternativa como lhe
fizeram crer. Os portugueses sabem que não autorizam a sua transformação em
cobaias, em trabalho forçado para experimentalismos em que não querem entrar. Sabem
também que qualquer experimentalismo possível sobre os 10% mais ricos é logo
afastado a priori com argumentos do
tipo: vamos espantar os investidores internacionais; vamos nivelar por baixo;
vamos negar o princípio do mérito; vamos bloquear a banca; e outros que tais. E
sabem que, sem contemplações, o governo se sobrepôs à concertação social para
operar uma das mais violentas redistribuições diretas de rendimento dos trabalhadores
para o capital, manipulando fiscalmente a TSU, segundo um modelo do mais frio
experimentalismo.
Nesta sub-família vemos, por exemplo, duas personalidades
que constituem para mim um dos grandes enigmas do mediatismo entre os
economistas, Vítor Bento e Miguel Beleza. Enigmas porque tenho que fazer um
grande esforço para descortinar alguma razão objetiva para justificar tanta
reverência da comunicação social. Em Vítor Bento talvez consiga ver o
aproveitamento do estatuto de uma figura interposta de Cavaco Silva. Em Miguel
Beleza, só se forem as suas rábulas em conferências em torno do anedotário de
ser um dragão em terras de Lisboa que, infelizmente, se tornaram repetitivas e
desinteressantes.
Deixemos a algazarra e anotemos alguns assomos de
lucidez.
Maria João Rodrigues (tão esquiva e silenciosa até há
pouco tempo) tenta hoje no Público mostrar que há outra solução, fazendo-o
sobretudo em torno da demonstração da necessidade de tirar partido do que se
vai passando na União Europeia. Tal alternativa assentaria segundo MJR na
interação virtuosa entre três prioridades: reduzir custos de financiamento público
e de empresas; travar a recessão e estimular o crescimento; iniciar uma trajetória
sustentada de redução do endividamento público e privado. Trata-se de uma boa
base de discussão e vale a pena voltar em dias seguintes a esta perspetiva.
Mas convém não ignorar (o que MJR faz) que a Comissão
Europeia não é uma unidade e que o que designa de doutrina oficial hoje
assumida pode ter várias nuances de concretização. Um Governo transformado até
aqui em aluno aplicado não tem grande moral nem rins suficientemente ágeis para
discutir com as instâncias internacionais uma revisão do memorando orientada
para aquelas preocupações. A imagem de reverência de Gaspar perante Schauble não
passará tão depressa. Um Governo que interiorizou o argumento do regabofe tão
caro aos adeptos da via punitiva com que cara e que argumentos pode
protagonizar essa mudança da sua estratégia perante Bruxelas e Frankfurt?
E para falar de lucidez vale a pena ler o artigo de hoje
da mais consistente jornalista portuguesa – Teresa de Sousa: “o que pensará um
português que ouviu o primeiro-ministro dizer-lhe todos os dias que andava a consumir mais do que devia e do que tinha e que lhe retirou rendimento, quando agora
lhe vêm dizer que a sua excessiva poupança é responsável pelos erros das contas
de Vítor Gaspar?”. Na mouche.
P.S. Convém ter presente que o país não é de fácil
governação. Hoje, o Público cita um caso que dá que pensar: “Magistrado que
dirige uma associação de colecionadores de armas reconhece ter apresentado faturas
falsas à Câmara de Cascais. E diz que a autarquia concordou”.
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