domingo, 16 de setembro de 2012

RATINHOS E RATÕES, ARRIVISTAS E GENTE LÚCIDA



O fim de semana vai possibilitar uma longa meditação a muito boa gente sobre o que o ressurgimento da Rua e das Praças significa e o que isso vai implicar do ponto de vista das movimentações políticas intramaioria e entre esta e a Presidência e a oposição.
Uma boa meditação exigiria algum silêncio e moderação. Mas, pelo contrário, a algazarra de comentários, opiniões, confissões e simples murmúrios está instalada. No meio de tanta algazarra, começa a ser possível o estabelecimento de algumas tipologias. Se não houvera outras vantagens, há pelo menos uma, bem relevante. Ajuda-nos a economizar o consumo de informação, pois para algumas dessas tipologias não vale a pena consumir pestanas. Passa-se à frente.
Para já tenho organizado o meu radar de leitura de acordo com as seguintes famílias.
Em primeiro lugar, emergem os ratinhos, ratões e até ratonas que preparam o abandono do barco. Esta rataria esperou para ver, até simpatizou com o estilo Passos (elas adoram-no), suportou o seu aparente populismo de se querer confundir com o português normal. Muitos deles esperariam uma viagem um pouco menos efémera, outros aguardam ainda alguma continuidade, mesmo que alquebrada e a fugir para o moribundo. Com esta família, não vale a pena perder tempo de leitura. Tenderão a existir sempre neste tipo de processos.
Um segundo grupo é o dos arrivistas. Os que descobriram tarde que o mito da austeridade expansionista não passa disso. Começaram por ser os mais punitivos, intérpretes das posições ferozes dos países do Norte, anunciadores da catarse pela qual o povo português teria de passar para poder abraçar uma via redentora. Hoje, recuaram. Ora porque nunca pensaram que lhes tocaria, pensando-se a salvo dessa via punitiva. Ora ainda porque o grupo dos que denunciam a ineficácia da via da austeridade “tout court” começa a engrossar e, nessas condições de companhia, mudar de opinião começa a ser sedutor. É um grupo fortemente instalado na comunicação social e nos jornalistas comentadores, mesmo que esporadicamente.
Entre este grupo e o dos que permanecem ou evoluem para posições de lucidez, ontem despontou uma sub-família, incomodada com o risco de toda esta movimentação de rua e de praça criar a miragem de que os riscos da austeridade estariam afastados da sociedade portuguesa. Erro de perspetiva e ainda não compreenderam nada. Não há, a meu ver, um português com dois dedos de testa que não tenha compreendido que o consumo privado e o consumo/investimento público têm de se ajustar a um contexto diferente. A sua participação massiva nas manifestações de ontem não significa de modo algum ignorar ou fazer de conta sobre essa necessidade. O que os portugueses hoje sabem com clareza é que o modo iníquo, desigual, injusto e pouco transparente com que esse ajustamento começou a ser elaborado e concretizado não é a única alternativa como lhe fizeram crer. Os portugueses sabem que não autorizam a sua transformação em cobaias, em trabalho forçado para experimentalismos em que não querem entrar. Sabem também que qualquer experimentalismo possível sobre os 10% mais ricos é logo afastado a priori com argumentos do tipo: vamos espantar os investidores internacionais; vamos nivelar por baixo; vamos negar o princípio do mérito; vamos bloquear a banca; e outros que tais. E sabem que, sem contemplações, o governo se sobrepôs à concertação social para operar uma das mais violentas redistribuições diretas de rendimento dos trabalhadores para o capital, manipulando fiscalmente a TSU, segundo um modelo do mais frio experimentalismo.
Nesta sub-família vemos, por exemplo, duas personalidades que constituem para mim um dos grandes enigmas do mediatismo entre os economistas, Vítor Bento e Miguel Beleza. Enigmas porque tenho que fazer um grande esforço para descortinar alguma razão objetiva para justificar tanta reverência da comunicação social. Em Vítor Bento talvez consiga ver o aproveitamento do estatuto de uma figura interposta de Cavaco Silva. Em Miguel Beleza, só se forem as suas rábulas em conferências em torno do anedotário de ser um dragão em terras de Lisboa que, infelizmente, se tornaram repetitivas e desinteressantes.
Deixemos a algazarra e anotemos alguns assomos de lucidez.
Maria João Rodrigues (tão esquiva e silenciosa até há pouco tempo) tenta hoje no Público mostrar que há outra solução, fazendo-o sobretudo em torno da demonstração da necessidade de tirar partido do que se vai passando na União Europeia. Tal alternativa assentaria segundo MJR na interação virtuosa entre três prioridades: reduzir custos de financiamento público e de empresas; travar a recessão e estimular o crescimento; iniciar uma trajetória sustentada de redução do endividamento público e privado. Trata-se de uma boa base de discussão e vale a pena voltar em dias seguintes a esta perspetiva.
Mas convém não ignorar (o que MJR faz) que a Comissão Europeia não é uma unidade e que o que designa de doutrina oficial hoje assumida pode ter várias nuances de concretização. Um Governo transformado até aqui em aluno aplicado não tem grande moral nem rins suficientemente ágeis para discutir com as instâncias internacionais uma revisão do memorando orientada para aquelas preocupações. A imagem de reverência de Gaspar perante Schauble não passará tão depressa. Um Governo que interiorizou o argumento do regabofe tão caro aos adeptos da via punitiva com que cara e que argumentos pode protagonizar essa mudança da sua estratégia perante Bruxelas e Frankfurt?
E para falar de lucidez vale a pena ler o artigo de hoje da mais consistente jornalista portuguesa – Teresa de Sousa: “o que pensará um português que ouviu o primeiro-ministro dizer-lhe todos os dias que andava a consumir mais do que devia e do que tinha e que lhe retirou rendimento, quando agora lhe vêm dizer que a sua excessiva poupança é responsável pelos erros das contas de Vítor Gaspar?”. Na mouche.
P.S. Convém ter presente que o país não é de fácil governação. Hoje, o Público cita um caso que dá que pensar: “Magistrado que dirige uma associação de colecionadores de armas reconhece ter apresentado faturas falsas à Câmara de Cascais. E diz que a autarquia concordou”.

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