(Reflexões
suscitadas por um pequeno artigo de Blanko Milanovic e por uma evidência
recente na sociedade americana, ambas demonstrando que a desigualdade não é coisa para ser superada por
uma taxa de crescimento simplesmente mais elevada)
Em posts
anteriores, mostrei que a ira implícita na polarização política da sociedade
americana tinha vários fundamentos, dos quais um dos mais salientes era a perceção
generalizada de que a sociedade americana se tornou profundamente mais desigual.
E essa perceção não é algo de difuso. Alimenta-se de dados muito concretos.
O New York Times online de 12 de fevereiro (edição de 13 de fevereiro para os que tenham o prazer
de o folhear com uma boa taça de café americano) traz a essa perceção novos
dados bem objetivos. O artigo da jornalista Sabrina Tavernise trabalha dados
recentes sobre o já anteriormente conhecido gap
de duração de vida entre os mais ricos e os mais pobres, medido por exemplo pela
esperança de vida para grupos socioeconómicos diferentes.
Assim, por exemplo, para os homens nascidos em 1920, a
diferença de esperança de vida entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres situava-se
nos 6 anos favorecendo os mais ricos. Mas para os homens nascidos em 1950, a
diferença atingia os 14 anos. A diferença para grupos similares de mulheres aumentou
de 4,7 para 13 anos. Este aumento do gap é sobretudo impressivo tendo em conta que
eles acontecem apesar dos progressos gerais observados em matéria de medicina,
tecnologia e da própria educação que, como sabemos, influencia bastante as
condições de saúde. Como é óbvio, a jornalista alerta para a necessidade de investigação
mais profunda para justificar o agravamento. Não é de afastar, por exemplo, o
efeito de comportamentos diferenciados entre os mais ricos e os mais pobres em
matéria de consumo de tabaco e haverá por certo outros possíveis efeitos desta
natureza. Mas a evolução do conhecimento em torno da ideia de que o aumento da
esperança de vida não é para todos vai mostrando que as desigualdades económicas
e sociais vão pesando no esbatimento dos progressos da medicina e da tecnologia
para determinados grupos sociais. Pode ser surpreendente, mas a verdade é que
os grupos de americanos com menores rendimentos apresentam dos mais baixos níveis
de esperança de vida entre as economias mais desenvolvidas. E há evidências que
mostram que os gaps entre níveis de
esperança de vida começaram a aumentar quando a desigualdade na distribuição do
rendimento se intensificou. Por isso, não é de perceção difusa que estamos a
falar. É antes de dados suficientemente objetivos que se trata. A desigualdade
na morte transforma-se assim em algo de estrutural.
O artigo de Milanovic é o seu post de 12 de fevereiro no
seu blogue Globalinequality e chama-se
“Inequality: the structural aspects”. Milanovic,
hoje colega de Krugman no Luxemburg IncomeStudy Center (LISC) em Nova Iorque, é como repetidas vezes aqui
acentuei o grande estudioso da desigualdade a nível mundial. É com expectativa
que se aguarda para abril deste ano a publicação da sua última obra em que ele
ensaia o cruzamento das duas temáticas: globalização e desigualdade a nível
mundial. Milanovic alinha entre os que consideram que os avanços da
desigualdade não serão corrigidos por uma eventual retoma relevante do crescimento
económico. Até porque a própria desigualdade é fator de estancamento do
crescimento económico como o desenvolvimento do tema estagnação secular tem
vindo a evidenciar.
(A sair em breve)
Milanovic elege três grandes mudanças para fundamentar a
dimensão estrutural da desigualdade atual. Duas são mais conhecidas, a
plutocracia ou seja a influência política dos mais poderosos e a desigualdade
de oportunidades (na vida e na morte acrescenta-se). Gostaria de me deter na
outra mudança estrutural que o economista do LISC cunha a partir de um conceito
que faz parte intrínseca da minha formação nuclear na economia do
desenvolvimento, a desarticulação de muitas das sociedades ocidentais. O
conceito de desarticulação emergiu na literatura dos anos 60 e 70 como a
característica estrutural da grande maioria das economias dependentes e
subdesenvolvidas decorrente da sua peculiar forma de inserção na divisão internacional
do trabalho. A desarticulação traduzia-se sobretudo na divergência de
interesses entre os grupos sociais mais diretamente conectados com o
capitalismo internacional e os permaneciam dele afastados. É curioso como Milanovic
importa esse conceito para situar hoje a sociedade americana, profundamente dividida
entre uma elite fortemente globalizada e fortemente beneficiária dos ganhos
desse processo e uma outra esmagadora maioria da população que vê na globalização
apenas a ameaça de perda de emprego e de rendimento, na qual se encontra a classe
média americana, despedaçada pela falência do mito da progressão social prometida
pelo capitalismo americano da “free enterprise”. É de facto sugestivo que
algumas das ferramentas com que comecei a trabalhar para compreender as relações
entre subdesenvolvimento e divisão internacional do trabalho estejam agora a
ser recuperadas, gerando uma translação de sentido inverso ao que estávamos
habituados. Ou seja, a economia do desenvolvimento foi obrigada a dotar-se de
outras ferramentas para compreender o capitalismo tardio e dependente em continentes
como a América Latina e agora tais ferramentas revelam-se ajustadas para a sua
transferência e aplicação na compreensão da desigualdade estrutural dos mais desenvolvidos.
Estou com a intuição que tenho de ir buscar às estantes
de Seixas e do rés-do-chão desta casa obras de então para ficarem no meu raio
de alcance mais imediato. Quem diria?
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