domingo, 14 de fevereiro de 2016

DESIGUALDADE ESTRUTURAL




(Reflexões suscitadas por um pequeno artigo de Blanko Milanovic e por uma evidência recente na sociedade americana, ambas demonstrando que a desigualdade não é coisa para ser superada por uma taxa de crescimento simplesmente mais elevada)


Em posts anteriores, mostrei que a ira implícita na polarização política da sociedade americana tinha vários fundamentos, dos quais um dos mais salientes era a perceção generalizada de que a sociedade americana se tornou profundamente mais desigual. E essa perceção não é algo de difuso. Alimenta-se de dados muito concretos.

O New York Times online de 12 de fevereiro (edição de 13 de fevereiro para os que tenham o prazer de o folhear com uma boa taça de café americano) traz a essa perceção novos dados bem objetivos. O artigo da jornalista Sabrina Tavernise trabalha dados recentes sobre o já anteriormente conhecido gap de duração de vida entre os mais ricos e os mais pobres, medido por exemplo pela esperança de vida para grupos socioeconómicos diferentes.

Assim, por exemplo, para os homens nascidos em 1920, a diferença de esperança de vida entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres situava-se nos 6 anos favorecendo os mais ricos. Mas para os homens nascidos em 1950, a diferença atingia os 14 anos. A diferença para grupos similares de mulheres aumentou de 4,7 para 13 anos. Este aumento do gap é sobretudo impressivo tendo em conta que eles acontecem apesar dos progressos gerais observados em matéria de medicina, tecnologia e da própria educação que, como sabemos, influencia bastante as condições de saúde. Como é óbvio, a jornalista alerta para a necessidade de investigação mais profunda para justificar o agravamento. Não é de afastar, por exemplo, o efeito de comportamentos diferenciados entre os mais ricos e os mais pobres em matéria de consumo de tabaco e haverá por certo outros possíveis efeitos desta natureza. Mas a evolução do conhecimento em torno da ideia de que o aumento da esperança de vida não é para todos vai mostrando que as desigualdades económicas e sociais vão pesando no esbatimento dos progressos da medicina e da tecnologia para determinados grupos sociais. Pode ser surpreendente, mas a verdade é que os grupos de americanos com menores rendimentos apresentam dos mais baixos níveis de esperança de vida entre as economias mais desenvolvidas. E há evidências que mostram que os gaps entre níveis de esperança de vida começaram a aumentar quando a desigualdade na distribuição do rendimento se intensificou. Por isso, não é de perceção difusa que estamos a falar. É antes de dados suficientemente objetivos que se trata. A desigualdade na morte transforma-se assim em algo de estrutural.

O artigo de Milanovic é o seu post de 12 de fevereiro no seu blogue Globalinequality e chama-se “Inequality: the structural aspects”. Milanovic, hoje colega de Krugman no Luxemburg IncomeStudy Center (LISC) em Nova Iorque, é como repetidas vezes aqui acentuei o grande estudioso da desigualdade a nível mundial. É com expectativa que se aguarda para abril deste ano a publicação da sua última obra em que ele ensaia o cruzamento das duas temáticas: globalização e desigualdade a nível mundial. Milanovic alinha entre os que consideram que os avanços da desigualdade não serão corrigidos por uma eventual retoma relevante do crescimento económico. Até porque a própria desigualdade é fator de estancamento do crescimento económico como o desenvolvimento do tema estagnação secular tem vindo a evidenciar.


(A sair em breve)

Milanovic elege três grandes mudanças para fundamentar a dimensão estrutural da desigualdade atual. Duas são mais conhecidas, a plutocracia ou seja a influência política dos mais poderosos e a desigualdade de oportunidades (na vida e na morte acrescenta-se). Gostaria de me deter na outra mudança estrutural que o economista do LISC cunha a partir de um conceito que faz parte intrínseca da minha formação nuclear na economia do desenvolvimento, a desarticulação de muitas das sociedades ocidentais. O conceito de desarticulação emergiu na literatura dos anos 60 e 70 como a característica estrutural da grande maioria das economias dependentes e subdesenvolvidas decorrente da sua peculiar forma de inserção na divisão internacional do trabalho. A desarticulação traduzia-se sobretudo na divergência de interesses entre os grupos sociais mais diretamente conectados com o capitalismo internacional e os permaneciam dele afastados. É curioso como Milanovic importa esse conceito para situar hoje a sociedade americana, profundamente dividida entre uma elite fortemente globalizada e fortemente beneficiária dos ganhos desse processo e uma outra esmagadora maioria da população que vê na globalização apenas a ameaça de perda de emprego e de rendimento, na qual se encontra a classe média americana, despedaçada pela falência do mito da progressão social prometida pelo capitalismo americano da “free enterprise”. É de facto sugestivo que algumas das ferramentas com que comecei a trabalhar para compreender as relações entre subdesenvolvimento e divisão internacional do trabalho estejam agora a ser recuperadas, gerando uma translação de sentido inverso ao que estávamos habituados. Ou seja, a economia do desenvolvimento foi obrigada a dotar-se de outras ferramentas para compreender o capitalismo tardio e dependente em continentes como a América Latina e agora tais ferramentas revelam-se ajustadas para a sua transferência e aplicação na compreensão da desigualdade estrutural dos mais desenvolvidos.

Estou com a intuição que tenho de ir buscar às estantes de Seixas e do rés-do-chão desta casa obras de então para ficarem no meu raio de alcance mais imediato. Quem diria?

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