sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

REFLEXÕES À MARGEM DO ORÇAMENTO



(Escrevo ainda sem conhecer em profundidade os conteúdos da proposta orçamental do Governo e a decisão do Colégio de Comissários mas o que é conhecido já permite uma reflexão)

Costa e os partidos de esquerda que assinam o acordo parlamentar de suporte ao governo minoritário do PS talvez se tenham posto a jeito quando deixaram que se instalasse a ideia de que a austeridade acabou. Sabemos que não é esse o problema. O que está em causa na alternativa de governo é romper com a tese de que só a austeridade penosa e punitiva consegue as condições propícias ao crescimento económico. Uma outra coisa é reconhecer que sem reestruturação e anulação parcial de dívida pública o esforço de consolidação orçamental continuará a ser necessário mesmo que orientado por outros princípios. A tese de que só a austeridade penosa e punitiva consegue criar as condições favoráveis ao crescimento económico constitui o maior embuste pretensamente reafirmado pela teoria económica dos últimos tempos. É uma pura aldrabice, sem quaisquer fundamentos na teoria económica. É o produto de uma encenação ideológica orquestrada pelos ideólogos alinhados com o Partido Popular Europeu. E é um facto que existe em Bruxelas uma burocracia em fazer respeitar essa orientação, que é preciso combater sem dó nem piedade, regressando ao delicioso epíteto dos tempos de Abril de que o lugar da tecnocracia não independente é o caixote do lixo da história. Se a tese estivesse certa e se os países do Norte mais interessados nessa conceção tivessem razão, então a Europa não estava como está, sobretudo quando comparada com a maior abrangência e criatividade da política macroeconómica americana, mesmo tendo em conta a recente cedência do FED a uma precipitada subida das taxas de juro de referência. E essa mesma orientação comunitária no fundo é a mesma que precipita a tragédia da ação política da União e tem levado ao recrudescimento dos populismos autoritários de esquerda e direita na Europa e os consequentes cenários de ingovernabilidade que estão a desenhar-se.

Por todas estas razões, não é propriamente a viragem da página da austeridade que está em jogo na possibilidade deste Governo se ir aguentando ou se esfrangalhar na imaturidade de um acordo e de quem o subscreve. O que estará em causa, designadamente neste Orçamento, é a desmistificação definitiva de que o crescimento só é possível com austeridade, mais ou menos desenfreada no tempo. O cidadão eleitor não é parvo, mesmo que não seja economicamente letrado. Estas imprecisões de linguagem e de proclamação cavam a sepultura da intervenção política e o facto do populismo em Portugal não ter a força de outros países (agradeça-se ao PCP o seu contributo) não é razão suficiente para ignorar esses caldos de galinha.

Por isso, é grotesco o baixo nível do comentário económico e político em Portugal. Parte deste comentário está desesperado nos seus interesses de classe com a negação do princípio de que o crescimento para ser possível exige a austeridade mais penosa. O modo leviano como a escrita de muitos põe a descoberto os seus interesses de ligação aos intocáveis nos sacrifícios atinge as raias da mais pura impunidade.

Estou à vontade para criticar toda esta canzoada pois sempre achei que os estímulos ao consumo do programa do PS, modificado para ser apoiado à esquerda, devem limitar o seu papel a um processo de transição que a viragem política e de orientações macroeconómicas sempre implica. É de facto possível robustecer o mercado interno de modo a permitir uma maior resistência a choques de procura externa que, como está a Europa e o mundo, tenderão a intensificar-se, apesar das contratendências da descida do preço do petróleo. Mas numa economia como a portuguesa, de pequena dimensão e sem possibilidade de ascender a rendimentos per capita do tipo Suiça ou Noruega, em que a pequena dimensão física não impede a maior dimensão económica dos respetivos mercados internos, esse robustecimento tem limites e não pode ser do tipo “one shot” e já está. Tem de ser gradual. Para além disso, é muito discutível que o processo de intensificação da mudança estrutural do perfil de especialização produtiva da economia portuguesa possa ser atingido a partir do mercado interno. Direi mesmo que não. Esse processo exige escala, consumidores exigentes e procura intensiva em conhecimento, que só os mercados externos (e nem todos) estarão em condições de assegurar.

Por isso a situação é madastra e absurda. A viabilidade de uma alternativa às teses europeias da austeridade como fator de crescimento económico é paradoxalmente penalizada pelo efeito negativo que essas mesmas teses têm provocado na dinâmica da procura mundial e especialmente da europeia. E já não falo nos fardos que continuam aí na banca: vejam-se os prejuízos da Caixa Geral de Depósitos sem aparente serviço público e o lio em que o BPI está metido na sua tentativa de se purificar destacando-se dos assuntos africanos.

Entendo por isso que o orçamento em apresentação terá exagerado a possibilidade dos estímulos ao consumo poderem condicionar favoravelmente o crescimento económico, ou o que é praticamente a mesma coisa terão subavaliado a influência castrante do crescimento económico que a situação mundial, em que os laivos deflacionários não desapareceram, tenderá a provocar.

Pacheco Pereira interrogava-se ontem no Quadratura se o orçamento não deveria ser menos ambíguo e apostar mais decisiva e claramente em mudanças mais fortes e simultaneamente menos extensas. Ao mesmo tempo, denunciava o que para ele é uma má compreensão por parte dos três partidos subscritores do acordo parlamentar da importância histórica do que foi conseguido, tanto mais relevante quanto mais prolongado for o tempo em que esteja em vigor. A clareza das escolhas públicas é de facto para mim a melhor forma de marcar a diferença. 


Uma nota final para sublinhar aqui de novo a pobreza franciscana do comentário económico em Portugal. Com exceção de Francisco Louçã, que o destacou bem no seu blogue no Público, toda a gente se referiu sem a mínima hesitação conceptual ao conceito de défice estrutural, como se tratasse de uma categoria económica perfeitamente estabilizada e sem qualquer espécie de mácula potencial. Não, não é assim. O cálculo do défice estrutural depende fortemente da construção estatística do chamado produto potencial da economia e do associado “output gap”, ou seja a diferença entre o produto máximo potencial da economia e o produto que a economia está atualmente a atingir. Fica para outra ocasião falar-vos aqui de mudanças metodológicas que os serviços da Comissão Europeia têm vindo a introduzir nestas construções estatísticas e econométricas. Incluir no Tratado Orçamental um indicador que pode a todo o momento ser alterado na sequência de inovações metodológicas não lembraria ao careca, como diria o nosso novo Presidente. O problema é que o careca, além de o ser, é mal-intencionado e tem agenda própria democraticamente não escrutinada. Para mal das nossas penas e agruras.

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