(Escrevo ainda sem
conhecer em profundidade os conteúdos da proposta orçamental do Governo e a
decisão do Colégio de Comissários mas o que é conhecido já permite uma reflexão)
Costa e os partidos de esquerda que assinam o acordo
parlamentar de suporte ao governo minoritário do PS talvez se tenham posto a
jeito quando deixaram que se instalasse a ideia de que a austeridade acabou. Sabemos
que não é esse o problema. O que está em causa na alternativa de governo é romper
com a tese de que só a austeridade penosa e punitiva consegue as condições propícias
ao crescimento económico. Uma outra coisa é reconhecer que sem reestruturação e
anulação parcial de dívida pública o esforço de consolidação orçamental
continuará a ser necessário mesmo que orientado por outros princípios. A tese
de que só a austeridade penosa e punitiva consegue criar as condições favoráveis
ao crescimento económico constitui o maior embuste pretensamente reafirmado
pela teoria económica dos últimos tempos. É uma pura aldrabice, sem quaisquer fundamentos
na teoria económica. É o produto de uma encenação ideológica orquestrada pelos ideólogos
alinhados com o Partido Popular Europeu. E é um facto que existe em Bruxelas
uma burocracia em fazer respeitar essa orientação, que é preciso combater sem dó
nem piedade, regressando ao delicioso epíteto dos tempos de Abril de que o lugar
da tecnocracia não independente é o caixote do lixo da história. Se a tese estivesse
certa e se os países do Norte mais interessados nessa conceção tivessem razão,
então a Europa não estava como está, sobretudo quando comparada com a maior abrangência
e criatividade da política macroeconómica americana, mesmo tendo em conta a recente
cedência do FED a uma precipitada subida das taxas de juro de referência. E
essa mesma orientação comunitária no fundo é a mesma que precipita a tragédia
da ação política da União e tem levado ao recrudescimento dos populismos autoritários
de esquerda e direita na Europa e os consequentes cenários de ingovernabilidade
que estão a desenhar-se.
Por todas estas razões, não é propriamente a viragem da página
da austeridade que está em jogo na possibilidade deste Governo se ir aguentando
ou se esfrangalhar na imaturidade de um acordo e de quem o subscreve. O que
estará em causa, designadamente neste Orçamento, é a desmistificação definitiva
de que o crescimento só é possível com austeridade, mais ou menos desenfreada
no tempo. O cidadão eleitor não é parvo, mesmo que não seja economicamente letrado.
Estas imprecisões de linguagem e de proclamação cavam a sepultura da intervenção
política e o facto do populismo em Portugal não ter a força de outros países
(agradeça-se ao PCP o seu contributo) não é razão suficiente para ignorar esses
caldos de galinha.
Por isso, é grotesco o baixo nível do comentário económico
e político em Portugal. Parte deste comentário está desesperado nos seus interesses
de classe com a negação do princípio de que o crescimento para ser possível
exige a austeridade mais penosa. O modo leviano como a escrita de muitos põe a
descoberto os seus interesses de ligação aos intocáveis nos sacrifícios atinge
as raias da mais pura impunidade.
Estou à vontade para criticar toda esta canzoada pois sempre
achei que os estímulos ao consumo do programa do PS, modificado para ser
apoiado à esquerda, devem limitar o seu papel a um processo de transição que a
viragem política e de orientações macroeconómicas sempre implica. É de facto
possível robustecer o mercado interno de modo a permitir uma maior resistência a
choques de procura externa que, como está a Europa e o mundo, tenderão a intensificar-se,
apesar das contratendências da descida do preço do petróleo. Mas numa economia
como a portuguesa, de pequena dimensão e sem possibilidade de ascender a rendimentos
per capita do tipo Suiça ou Noruega, em que a pequena dimensão física não impede
a maior dimensão económica dos respetivos mercados internos, esse robustecimento
tem limites e não pode ser do tipo “one
shot” e já está. Tem de ser gradual. Para além disso, é muito discutível
que o processo de intensificação da mudança estrutural do perfil de
especialização produtiva da economia portuguesa possa ser atingido a partir do
mercado interno. Direi mesmo que não. Esse processo exige escala, consumidores
exigentes e procura intensiva em conhecimento, que só os mercados externos (e
nem todos) estarão em condições de assegurar.
Por isso a situação é madastra e absurda. A viabilidade
de uma alternativa às teses europeias da austeridade como fator de crescimento económico
é paradoxalmente penalizada pelo efeito negativo que essas mesmas teses têm provocado
na dinâmica da procura mundial e especialmente da europeia. E já não falo nos
fardos que continuam aí na banca: vejam-se os prejuízos da Caixa Geral de Depósitos
sem aparente serviço público e o lio em que o BPI está metido na sua tentativa
de se purificar destacando-se dos assuntos africanos.
Entendo por isso que o orçamento em apresentação terá
exagerado a possibilidade dos estímulos ao consumo poderem condicionar favoravelmente
o crescimento económico, ou o que é praticamente a mesma coisa terão
subavaliado a influência castrante do crescimento económico que a situação
mundial, em que os laivos deflacionários não desapareceram, tenderá a provocar.
Pacheco Pereira interrogava-se ontem no Quadratura se o
orçamento não deveria ser menos ambíguo e apostar mais decisiva e claramente em
mudanças mais fortes e simultaneamente menos extensas. Ao mesmo tempo, denunciava
o que para ele é uma má compreensão por parte dos três partidos subscritores do
acordo parlamentar da importância histórica do que foi conseguido, tanto mais
relevante quanto mais prolongado for o tempo em que esteja em vigor. A clareza
das escolhas públicas é de facto para mim a melhor forma de marcar a diferença.
Uma nota final para sublinhar aqui de novo a pobreza franciscana
do comentário económico em Portugal. Com exceção de Francisco Louçã, que o
destacou bem no seu blogue no Público, toda a gente se referiu sem a mínima
hesitação conceptual ao conceito de défice estrutural, como se tratasse de uma
categoria económica perfeitamente estabilizada e sem qualquer espécie de mácula
potencial. Não, não é assim. O cálculo do défice estrutural depende fortemente
da construção estatística do chamado produto potencial da economia e do associado
“output gap”, ou seja a diferença entre o produto máximo potencial da economia
e o produto que a economia está atualmente a atingir. Fica para outra ocasião
falar-vos aqui de mudanças metodológicas que os serviços da Comissão Europeia têm
vindo a introduzir nestas construções estatísticas e econométricas. Incluir no Tratado
Orçamental um indicador que pode a todo o momento ser alterado na sequência de
inovações metodológicas não lembraria ao careca, como diria o nosso novo Presidente.
O problema é que o careca, além de o ser, é mal-intencionado e tem agenda própria
democraticamente não escrutinada. Para mal das nossas penas e agruras.
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