terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

DESREGULAÇÃO EMPRESARIAL

(ROA - taxa de rendibilidade de ativos; ROIC - taxa de rendibilidade de capital investido; NIBCL - responsabilidades a pagar que não implicam acumulação de juros)



(Reflexões na margem da polarização política que vai caracterizando a antecâmara das eleições americanas com foco numa realidade que as alternativas políticas socialistas e social-democratas têm vindo perigosamente a ignorar, a empresa)


Iniciei com os preliminares complexos do IOWA uma atenta monitorização dos rumos políticos da sociedade americana, reiterando a perceção de que o debate económico e político em Portugal tende a menosprezar essa influência. Fá-lo ao abrigo daquela estafada ideia de que nada é replicável a partir da sociedade americana. Sendo um fervoroso adepto da necessidade de contextualizar as coisas, e de facto os EUA são eles próprios um contexto dificilmente replicável, concluo rapidamente que as tão apregoadas diferenças de contexto são tão relevantes por exemplos entre os países do Norte e do Sul da União Europeia como aquelas que nos afastam da referência americana. Tenho concluído que há dimensões de mudança na sociedade americana que é importante monitorizar, já que me parece que elas prenunciam mudanças no interior do próprio capitalismo, ainda que permaneça fiel ao reconhecimento das suas variedades, para seguir uma literatura que é cada vez mais relevante para percecionarmos as referidas mudanças (as variedades do capitalismo).

Um dos focos da atenção que reclamo é a inequívoca polarização que enquadra a longa tramitação das eleições americanas. Entre os republicanos, rapidamente chegaremos à conclusão de que Jeff Bush é um moderado, pois entre o evangelismo primário de Ted Cruz, o reacionarismo atroz de Rubio e o primarismo de Trump vá o diabo que escolha. As nossas mais recônditas lembranças do republicanismo das origens perdem-se nestas eleições. Entre os democratas, ninguém imaginaria que um idoso estatístico que se reclama socialista, Bernie Sanders, ousasse incomodar Hillary Clinton e que captasse sobretudo a atenção dos democratas mais jovens. Elizabeth Warren (The Fighting Chance, 2014 e The Two-income Trap são duas referências incontornáveis do pensamento de Warren, que eu bem gostaria que se candidatasse à Presidência dos EUA. Warren tem-se destacado também entre a reserva moral dos democratas na denúncia das vias através das quais a polarização se tem instalado na sociedade americana. Ao longo destes anos, captei neste blogue várias dimensões analíticas que podem explicar essa polarização, desde a mais rude evidência da desigualdade crescente na economia americana, até à polarização dos empregos, com ameaças às profissões de qualificações intermédias, passando pelas agruras da regulação que devia combater a concentração de poderes e que já viveu melhores dias.

Foi o amigo Guilherme Costa que me chamou à atenção para a relevância de uma literatura que deve juntar-se aquelas referências para compreendermos a referida polarização. Essa literatura foca-se sobretudo no interior da empresa e numa série de desregulações do seu papel na progressividade equilibrada das economias e tem entre outros expoentes nos contributos de William Lazonick (Profits without prosperity de 2014 e uma série de artigos sobre a chamada economia dos buybacks). Os contributos de Lazonick são contundentes pois situam uma perigosa evolução no modo como a gestão dos principais CEO é exercida: de criadores de valor estão a transformar-se em extratores de valor (CEO became takers not makers, na expressão do jornalista Steve Denning também da Forbes), através de processos internos não suficientemente escrutinados nos modelos de corporate governance em aplicação, cujo desenvolvimento transcende o alcance deste post. O tema é aliciante e suscita entre quem está interessado em alternativas de governação social-democrata que integrem o papel da empresa um enorme fascínio, que são frequentemente motivo de frustração pois é música que muito pouca gente à esquerda quer ouvir.

A referência para um artigo da Forbes sobre a matéria tem a mesma origem dos alertas anteriores. O articulista centra-se na evidência de que as remunerações dos ativos e do capital investido têm experimentado uma sólida tendência para a descida, comparando bem com taxas de retorno em torno dos 5 e dos 6% observadas em tempos idos. À menor produtividade real das empresas americanas correspondeu um conjunto de práticas diversas baseadas no artificialismo financeiro e no objetivo central de maximização do valor dos acionistas, representado no valor corrente das ações cotadas. Não é altura para explicar o contexto que terá determinado esta guinada de orientações. O que interessa destacar é que ela é contemporânea de uma outra evidência, já comentada por repetidas vezes neste blogue. Essa tendência é a declarada divergência entre o crescimento da produtividade e dos salários na economia americana. Essa divergência significa que nem os trabalhadores nem o consumidor, principalmente os primeiros, têm beneficiado dos aumentos de produtividade. Mas não apenas os CEO podem ser considerados os vilões desta história. O articulista da Forbes fala de outras cumplicidades, das administrações, de Wall Street, dos brokers, reguladores, políticos, fundos de pensões e outros investidores todos se mantiveram indiferentes a essa perniciosa tendência. O conjunto de distorções associadas a estas práticas é vasto e impiedoso no seu enunciado: “decisões a curto prazo, diminuições de custos implacáveis, redução de efetivos, operações expremidas ao máximo, menor investimento, inovações desajeitadas, mão-de-obra desmotivada, benefícios e pensões reduzidos para os trabalhadores, fusões loucas, encerramento de fábricas, produção off-shore, aumento de dívida, menor capacidade para competir, descida das taxas de rendibilidade de ativos, ilegalidade crescente no setor financeiro, financialização excessiva da economia”. Trágico, não?

Tenho para mim que as questões da regulação destes desvarios empresariais devem ser colocadas em simultâneo com uma política macroeconómica que não ignore as ameaças de estagnação secular que se abatem sobre as economias mais avançadas. Há seguramente esperança em novos modelos organizacionais e de management que resistam à valorização e frequentemente artificial do valor das ações. Modelos que encarem a organização como um todo e que não afastem os trabalhadores dos benefícios da produtividade. Modelos que não pactuem com CEO takers e não fazedores (criando) de valor.

E sobretudo uma vontade firme de quebrar com o estado de coisas que permitiu estas derivas. No pensamento do articulista da Forbes rejeitar: “Como sociedade tolerámos que a extração de valor a partir das empresas predominasse sobre a criação de valor; que os ganhos financeiros das melhorias de produtividade não fossem distribuídos aos trabalhadores que os geraram; que os executivos atribuíssem a si próprios bónus extraordinários por um desempenho objetivamente fraco; que muitas administrações tivessem degenerado em sistemas formalizados de ajuda mútua; que a manipulação ilegal dos preços das ações em escala gigantesca se transformasse em prática regular; e que a estagnação e o declínio económico fossem vistos não como algo de aceitável mas de inevitável. O facto é que como sociedade que tolerou estas práticas nos transformámos em parte do problema”.

Mas que boa conversa política para o futuro pode ser iniciada partindo desta perspetiva. Há interessados?

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