terça-feira, 10 de janeiro de 2017

AFINAL O MODELO SOCIAL TAMBÉM É PRODUTIVO



(Piketty põe os pontos nos is, mostrando como a França e a Alemanha atingem níveis de produtividade por hora de trabalho similares aos americanos e com resultados de maior equidade, assim sendo …)

O modelo social europeu, na sua dupla e indissociável combinação de dimensão económica e social, é frequentemente desvalorizado por, alegadamente, conseguir o seu desempenho social à custa de uma menor agilidade económica, na boca de alguns à custa de vulnerabilidades do ponto de vista da competitividade.

É conhecido que o economista francês Thomas Piketty, catapultado para a ribalta da comunicação com o seu Capital no Século XXI e com os seus trabalhos sobre a deriva inequalitária do capitalismo recente, se tem destacado com diferentes propostas de preservação e defesa do modelo social europeu que passam sobretudo por uma nova fiscalidade para os tempos de hoje. Compreensivelmente, essa nova fiscalidade está focada em propostas suscetíveis de suster a deriva da desigualdade.

Na senda da exposição e notoriedade públicas que a sua obra lhe permitiu alcançar, Piketty é cada vez mais um economista interventivo, com imaginação, no debate político, rompendo com o estatuto bacteriologicamente puro dos economistas agnósticos em relação aos grandes desafios políticos e sociais do nosso tempo. O seu blogue no Le Monde está nessa linha, preparando ideias e pesquisas que tomam depois forma mais elaborada em conferências, seminários e alguns artigos.

O post de 9 de janeiro deste ano sobre o tema da produtividade em França e na Alemanha, em confronto com o panorama mais global das economias maduras e avançadas, está nessa linha de intervenção e traz-nos sobretudo uma leitura distinta das narrativas que têm vindo a ser construídas sobre a paquidérmica França, acusada de todas as derivas de rigidez, de mordomias e de ausência de flexibilidade económica. Por falar em narrativas, aproveito para colocar em fila de espera neste blogue a importante intervenção que o Nobel RobertSchiller (o da exuberância irracional dos mercados) realizou na conferência anual da American Economic Association sobre as narrativas económicas.

Apesar de nos alertar para as debilidades (como média que é) do indicador “produtividade por hora de trabalho” (PIB /horas trabalhadas), e Piketty é muito cuidadoso na não instrumentalização de informação estatística, o economista francês mostra-nos que a França e a Alemanha partem nos anos 70 de níveis de produtividade bem inferiores à americana, para após 1985 realizarem um apreciável esforço de recuperação e se situarem hoje em níveis praticamente similares ao dos EUA. Em contrapartida, a partir de 1995, o Reino Unido viu a sua produtividade praticamente estagnar, situando-se hoje a um nível bastante inferior (cerca de 25%) aos níveis da França e da Alemanha. A informação sistematizada por Piketty mostra ainda que as diferenças em termos de horas trabalhadas entre os três países que lideram a produtividade são irrisórias.

Independentemente de outros desenvolvimentos que o próprio Piketty acrescenta ao tema, os 55 euros de produto que uma hora de trabalho gera, em média, em França estão ao nível do observado nos EUA e na Alemanha e acima significativamente do valor atingido pelo Reino Unido.

Ora daqui podemos desde já inferir duas importantes conclusões, não esquecendo os avisos de Piketty sobre as limitações de uma média e do facto de, no numerador, estar o Produto Bruto, onde deveria estar uma grandeza líquida que descontasse as depreciações necessárias para compensar o consumo (obsolescência) de capital: primeiro, os países de modelo de estado social não têm desempenho económico inferior ao das economias que fazem gala de não respeitar esse modelo; segundo, a rígida França tem valores similares de produtividade ao da disciplinada e poupada Alemanha. São duas narrativas que caem pela base, não valendo a pena por isso reproduzi-las indefinidamente, pois os números estão aí e respeitam a períodos longos e estão avaliados à paridade de poder de compra, compensando eventuais diferenças de preços relativos entre os países em confronto. A pretensa superioridade do mercado puro e duro não existe e, no caso do Reino Unido, até há inferioridade deste último e por isso mesmo custa a crer como os Conservadores ingleses conseguiram ganhar a última eleição, para sucumbirem nas armadilhas do BREXIT. Piketty avança ainda com uma explicação para a recuperação da França e da Alemanha e para o recuo dos EUA e do Reino Unido: investimentos em educação.

Mas o trabalho de Piketty traz-nos mais nuances, todas com um vasto alcance em termos de discussão de modelo social. Assim, por exemplo, na Alemanha o número de horas de trabalho por trabalhador empregado é mais baixo do que em França e a explicação é a maior presença de trabalho em tempo parcial, que levanta sempre a questão de saber se é fruto de opções de vida familiar (como nos países escandinavos) ou se resultam de necessidade. Nos EUA e no Reino Unido, com menor presença dos benefícios do Welfare State em termos de mercado de trabalho, o tempo de trabalho é mais longo. A superioridade dos EUA em termos de rendimento per capita não é uma vantagem de produtividade. É tão só um problema de tempo de trabalho. Para além disso, os níveis de desigualdade observados nos EUA e no Reino Unido são superiores. Reunindo toda esta evidência, parece poder concluir-se que o desempenho económico do modelo social europeu é similar senão superior ao dos EUA e do Reino Unido e claramente acompanhado por melhor equidade e melhores condições de vida. A narrativa da agilidade do mercado fica uma vez mais comprometida.

Resta um outro termo de comparação entre a França e a Alemanha. Para produtividades similares, a evidência diz-nos que os dois países estarão a utilizar os crescimentos de produtividade de forma diversa. Assim, a um excedente comercial externo alemão, que já é estrutural, sucedendo o contrário em França. A duração temporal do excedente comercial externo alemão já superou tudo que poderia ser considerado uma atitude de reserva e de prudência face às incertezas do futuro. Se todos os países europeus se dessem ao luxo de um excedente comercial externo como o alemão, não haveria no mundo capacidade para compensar esses excedentes. A economia mundial colapsaria.

Moral da história. A descuidada e distraída Europa internalizou erradamente a narrativa de que o seu modelo económico e social traz rigidez e empobrece o desempenho económico. Não é verdade. O conceito de competitividade é obscuro. O de produtividade não, é claro, mais facilmente mensurável e permite declinações importantes, que se transformam em nuances de análise. A França e a Alemanha têm desempenhos de produtividade iguais ou superiores aos de economias pressupostamente abençoadas pela agilidade de mercado. Esse desempenho económico igual é acompanhado de melhor desempenho social. Por conseguinte, o problema não é o modelo social. Há certamente desafios transversais e comuns como o demográfico. Mas o problema central é o de um comportamento não coordenado das suas principais economias. A começar pelo excedente comercial externo alemão.

E, reparem, não chamámos à colação o modelo escandinavo.

Há alguém que consiga explicar esta ideia central aos alemães?

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