(A colocação de
uma interrogação num tema que foi praticamente introduzido em Portugal por este
blogue pode justificar compreensível espanto, mas é aqui suscitada pela questão de saber
como é que se discute integradamente uma ameaça estrutural com perspetivas
relativamente animadoras de animação económica a curto prazo …)
Temos hoje um longo post, fruto
de mais uma viagem do Alfa com atrasos.
Ontem, no post sobre a saída de
cena de Obama e a propósito do seu legado económico, fizemos referência a um
panorama bem mais risonho do que o das restantes economias avançadas,
especialmente na zona Euro, sobretudo se nos projetarmos comparativamente com o
período imediatamente anterior à crise de 2007-2008. Há uns dias atrás, quando
acusámos neste blogue a primeira vez em muitos anos em que as revisões em alta
de previsões económicas suplantavam as revisões em baixa e mobilizámos para a
reflexão as previsões macroeconómicas da Fulcrum
(Gavyn Davies), anotámos também o panorama relativamente promissor que se
antevê para 2017. É um facto que não podemos ignorar o período demasiado longo
da recuperação após a crise financeira. Do mesmo modo, também não ignoramos a
vulnerabilidade que esses dados promissores revelam face a choques políticos
que podem acontecer com toda a probabilidade em 2017.
Não vamos seguir aqui a relativa desvalorização das conjunturas que por
exemplo o nosso ministro das Finanças utilizou para menorizar o impacto de
termos emitido dívida a 10 anos (e não pouca) a 4,2%, quando a Alemanha também
a emitiu a menos de 0,5%. Só posso desejar que todos os oráculos estejam com o
ministro Centeno e que se trate de facto de um movimento temporário.
Mas qual é a razão deste introito? É tão só uma questão de rigor e de
respeito pelos leitores. As perspetivas relativamente animadoras associadas ao
legado de Obama e o panorama promissor das perspetivas macro veiculam novidade
apenas pelo facto de respeitarem às economias avançadas e maduras. Ora um dos
temas trazidos por este blogue para o debate nacional, o tema da estagnação
secular, é no contexto dessas economias que é forjado e que tem sentido ser
discutido. E, por isso, do ponto de vista do leitor não avisado, pode
perguntar-se se, em ambiente de recuperação que já foi agónica mas não o é
atualmente pelo menos na economia americana, continua a fazer sentido
continuarmos fixados no conceito de estagnação secular.
A resposta a esta questão pode ser mais intuitiva ou estruturada. Do ponto
de vista intuitivo, bastaria recordar que o economista que trouxe a matéria
para o debate, Lawrence Summers, não é de todo destituído. Assim sendo, podemos
partir do pressuposto que ele acompanha a recuperação americana. Não deixou por
isso de continuar a discutir a estagnação secular. Haverá, por isso,
justificações fundamentadas para que isso aconteça e estaremos nós próprios
confortados.
Mas é possível ir mais além. Os economistas têm uma relação difícil com o
tempo. É aliás uma questão não totalmente resolvida pela economia política. Não
basta formularmos algumas equações em que as variáveis têm um símbolo inferior
t ou t-1 para dar a ideia que estamos atentos ao tempo. A questão é mais
complexa. Há que avaliar em que medida a variável (t-1) influencia a variável
(t). Há também que discutir se os valores observados em (t-1) condicionam o que
pode acontecer futuramente ou se os valores (t-1) são apenas um valor lógico
sem qualquer influência no percurso futuro. Concretizemos: os salários baixos
que caracterizaram a economia portuguesa no passado (t-1) projetam ainda
inércia para o futuro da economia portuguesa ou podem ser simplesmente
substituídos por um valor alternativo (e se no passado tivessem predominado
salários mais altos que configuração teria hoje a economia portuguesa?).
Esta relação difícil com o tempo, irreversível ou simplesmente lógico, tem
levado a maioria dos economistas a considerarem o curto prazo e o longo prazo
como se estivéssemos perante simples maneiras de interpretar os dados que as
evidências colocam no nosso raio de atenção. É verdade que há alguns
economistas que se atrevem a quantificar os períodos acomodáveis pelo curto e
pelo longo prazo. Mas essa classificação é frágil e falaciosa. Há também aquela
velhinha ideia com que se ensina introdução à economia. Pense o curto prazo
admitindo que, por exemplo, o capital é fixo e pense o longo prazo livre de
qualquer amarração ou rigidez. Mas continuamos no mundo da lógica. É difícil
imaginar uma economia com constância de capital fixo. Mesmo que não haja
investimento, há consumo de capital, as máquinas perdem valor e aí os
contabilistas dividem-se entre falar de depreciações ou de reintegrações. Um
contabilista mais informado saberá que a ótica de interpretação não é a mesma.
Um discípulo de Keynes, Sir Roy Harrod, foi dos poucos que ousou interligar
o ciclo (o curto prazo de alguns economistas) e o trend (o crescimento, aqui figurado como abrindo para o longo
prazo). Mas não deixou grande descendência. A interligação é complexa e se for
formalizada só está ao alcance de alguns.
Mas sabemos que a maturação do tempo em economia está muito para além da
sofisticação com que se representa o (t-1) e o (t). Por exemplo, na
disseminação das tecnologias e na busca do seu reflexo na produtividade, o
tempo interessa. É conhecido de todos o tempo espantosamente longo, cerca de
duas décadas e picos, que as tecnologias de informação e comunicação demoraram
a impactar a produtividade total dos fatores na economia americana. Ou, como
outro exemplo pertinente, sabemos que sendo baixo o número de mulheres em idade
ativa de procriação que vivem no interior do território continental, a
recuperação endógena da fertilidade nessas regiões é do tempo longo, para além
das ambições da política pública. É desse tempo que a economia política
precisa. Não o tempo lógico dos modelos no fundo atemporais. Mas o tempo
irreversível, o que marca o percurso futuro, o que pode gerar inércia, que pode
naturalmente ser rompida com estratégias de liberdade, em economia
essencialmente a inovação e o ousar fazer de maneira diferente.
Ora, o tema da estagnação secular que trouxemos para este blogue a partir
do momento em que Summers o apresentou numa conferência do FMI em Washington já
há alguns anos (2013) é desde tempo de que acabámos de falar. Se os argumentos
que subjazem ao conceito-ameaça-problema são válidos não há qualquer
contradição em continuar a discuti-lo, mesmo que Trump receba um legado
económico bem melhor do que aquele que Obama recebeu de Bush. A estagnação
secular não é uma bola de cristal ameaçada de nuvens negras quanto ao
crescimento económico futuro. Não é uma máquina de fazer previsões. É tão só
uma abordagem do crescimento económico futuro que sustenta que o período anomalamente
prolongado de taxas de juro reais de equilíbrio nulas ou negativas não é um
fenómeno transitório, algo de episódico. Será influenciado por fatores
estruturais, apreensíveis no tempo mais longo, os quais não podem deixar de
condicionar o crescimento económico futuro. Que Portugal não tenha conseguido
emitir dívida a 10 anos à taxa relativamente baixa que a Alemanha conseguiu é,
para nós, trágico mas isso não invalida o contexto de estagnação secular de que
os alemães beneficiaram. É trágico e revelador de que o tempo é irreversível,
penalizando Portugal mais por tempos passados do que pela situação atual.
A questão relevante é que não existe ainda uma teoria global e acabada da
estagnação secular. Summers cunhou o debate indo buscar uma expressão dos anos
30 de Alvin Hansen. Mérito seu. Mas talvez quem tenha porfiado mais por elencar
fatores de estagnação secular seja Brad DeLong, seu companheiro de muitos papers relevantes da segunda metade do
século XX e dos primeiros anos do século XXI. Por hoje, como o post já vai longo, aqui fica mais uma
tipificação desses fatores (chapéu a DeLong pela síntese), todos eles não
incompatíveis com o facto das economias avançadas parecerem evoluir para maior
crescimento em 2017:
- Desigualdade extrema de distribuição do rendimento, empolando poupança a partir do reforço de posição dos mais ricos;
- Constrangimentos tecnológicos e demográficos de pendor estagnacionista, reduzindo a taxa de retorno dos investimentos e o investimento desejado;
- Sobreinfluência de riscos e fatores políticos na definição de investimento de risco seguro;
- Um setor financeiro incapaz de mobilizar e estruturar a socialização do risco;
- Baixa inflação atual e expectada, rebaixando a taxa de juro de igualização do investimento e da poupança desejada;
- Procura de bens de investimento rebaixada e descida de preços relativos de capital, reduzindo a lucratividade deste setor;
- Dificuldades de remuneração de quem investe em tecnologias mais promissoras e com taxa de retorno social elevada;
- Capacidade anormalmente elevada de algumas economias (asiáticas sobretudo), constituindo em economia global e de livre circulação de capitais mais uma acha estagnacionista para o que acontece nas economias avançadas.
A simples declinação destes fatores mostra que o problema é mais complexo
do que a simples importação de um título apelativo de um paper dos anos 30. E não é seguramente o produto de um discurso
catastrofista. Em meu entender, a simples identificação dos fatores é
compreensível por um licenciado em economia com 3 anos de formação. Já não
estou a falar de interligações entre os fatores declinados. Se não for
entendível por um jovem economista com essa formação básica, então o problema é
mais grave. A formação superior não está a desempenhar o seu papel. E eu até
sei porquê …
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