sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

PARA MEMÓRIA FUTURA

(El Roto, El País)



A relação do presente e do circunstancial com as mudanças de longo prazo é algo de muito estranho. Quantas vezes vivemos um determinado acontecimento, seja como atores diretos e até influentes, seja como meros figurantes de um enredo que não compreendemos e de uma peça que não está para nós clara, que acaba por se transformar em algo de marcante e influente que marcou o futuro, sem que no momento o tivéssemos percebido como tal.

Hoje é diferente e a estranheza aumenta por esse motivo. Temos a perceção de que a tomada de posse de Trump como presidente eleito dos EUA pode ser um grande flop, futuramente perdido num impeachment qualquer ou num mandato agonizante, mas também pode acontecer que estejamos a viver um acontecimento impulsionador de grandes transformações e pressentir que a ele estamos a assistir de bancada mais ou menos impotente é arrepiante e desolador.

 (EL Roto, El País)
As franjas de topo do 1% de americanos mais ricos ocuparam o poder. Ainda ontem foi revelado que o futuro Secretário de Estado do Tesouro, o ministro das Finanças lá do sítio, era acusado de manter dinheiro fora do controlo do fisco americano em offshores mais ou menos sofisticados, o que mostra afinal ser uma excelente escolha para compor a estrutura governativa que acompanhará Trump. A indústria de lobby americano vai ter de se reorganizar, pois os lobbyistas têm na prática o poder. O mundo pode estar na antecâmara de uma guerra comercial sem tréguas, tudo o que as economias de pequena dimensão como a nossa decididamente não precisam nesta altura. A instabilidade mundial pode obviamente aumentar e o futuro da economia global pode oscilar à medida de caprichos e das réplicas que os mesmos determinarem. O combate às alterações climáticas pode transformar-se num assunto meramente científico sem quaisquer repercussões em compromissos políticos sérios. A intolerância pode disparar, o sofrimento dos desalojados, refugiados, perseguidos pode intensificar-se e o desespero pode passar a determinar uma grande massa de comportamentos individuais e coletivos.

Não é comum vivermos um acontecimento com a perceção de que podemos estar a assistir ao princípio do fim da estabilidade mundial. Mas é isso que marca a diferença no dia de hoje.

Certamente que nos podemos interrogar acerca de como foi isto possível. As réplicas que emergem por todo o mundo dão conta do pior. Ontem, os ratos da esquerda francesa, envolvidos nas primárias para as presidenciais, passaram o seu tempo de debate a discutir o protecionismo económico à la Trump que a França ou a Europa, conforme os gostos, deveriam assumir nos próximos tempos. Tais como ratos de experiência laboratorial, o comportamento dos candidatos mostrou com clareza que Trump já ganhou. Isto é tanto mais perturbador quando se compreende que os Democratas americanos ainda não quiseram compreender porque perderam. Vão precisar de mais evidência e de consequências mais práticas para se dignarem a uma pequena introspeção. Entretanto, no Parlamento Europeu um porta-voz de Berlusconi ganhou a Presidência, o que mostra bem o grau de incipiência a que os sociais-democratas e socialistas europeus se deixaram conduzir.

Mas que caldinho está aqui a perfilar-se!

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