(El Roto, El País)
A relação do presente e do circunstancial com as mudanças de longo prazo é
algo de muito estranho. Quantas vezes vivemos um determinado acontecimento,
seja como atores diretos e até influentes, seja como meros figurantes de um
enredo que não compreendemos e de uma peça que não está para nós clara, que
acaba por se transformar em algo de marcante e influente que marcou o futuro,
sem que no momento o tivéssemos percebido como tal.
Hoje é diferente e a estranheza aumenta por esse motivo. Temos a perceção
de que a tomada de posse de Trump como presidente eleito dos EUA pode ser um
grande flop, futuramente perdido num
impeachment qualquer ou num mandato agonizante, mas também pode acontecer que
estejamos a viver um acontecimento impulsionador de grandes transformações e pressentir
que a ele estamos a assistir de bancada mais ou menos impotente é arrepiante e
desolador.
(EL Roto, El País)
As franjas de topo do 1% de americanos mais ricos ocuparam o poder. Ainda
ontem foi revelado que o futuro Secretário de Estado do Tesouro, o ministro das
Finanças lá do sítio, era acusado de manter dinheiro fora do controlo do fisco
americano em offshores mais ou menos
sofisticados, o que mostra afinal ser uma excelente escolha para compor a estrutura
governativa que acompanhará Trump. A indústria de lobby americano vai ter de se reorganizar, pois os lobbyistas têm na prática o poder. O
mundo pode estar na antecâmara de uma guerra comercial sem tréguas, tudo o que as
economias de pequena dimensão como a nossa decididamente não precisam nesta
altura. A instabilidade mundial pode obviamente aumentar e o futuro da economia
global pode oscilar à medida de caprichos e das réplicas que os mesmos
determinarem. O combate às alterações climáticas pode transformar-se num
assunto meramente científico sem quaisquer repercussões em compromissos políticos
sérios. A intolerância pode disparar, o sofrimento dos desalojados, refugiados,
perseguidos pode intensificar-se e o desespero pode passar a determinar uma
grande massa de comportamentos individuais e coletivos.
Não é comum vivermos um acontecimento com a perceção de que podemos estar a
assistir ao princípio do fim da estabilidade mundial. Mas é isso que marca a
diferença no dia de hoje.
Certamente que nos podemos interrogar acerca de como foi isto possível. As
réplicas que emergem por todo o mundo dão conta do pior. Ontem, os ratos da
esquerda francesa, envolvidos nas primárias para as presidenciais, passaram o seu
tempo de debate a discutir o protecionismo económico à la Trump que a França ou a Europa, conforme os gostos, deveriam assumir
nos próximos tempos. Tais como ratos de experiência laboratorial, o
comportamento dos candidatos mostrou com clareza que Trump já ganhou. Isto é
tanto mais perturbador quando se compreende que os Democratas americanos ainda
não quiseram compreender porque perderam. Vão precisar de mais evidência e de
consequências mais práticas para se dignarem a uma pequena introspeção. Entretanto,
no Parlamento Europeu um porta-voz de Berlusconi ganhou a Presidência, o que
mostra bem o grau de incipiência a que os sociais-democratas e socialistas
europeus se deixaram conduzir.
Mas que caldinho está aqui a perfilar-se!
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