(Tributo singelo
a uma personalidade enorme que fecha um ciclo da nossa democracia, elaborado
sobretudo em função da característica que mais apreciava em Mário Soares, a demonstração de que fazem falta na política
aqueles que amam a vida e a dignificam, nunca se entregando)
A vida nunca proporcionou momentos decisivos de aproximação a Mário Soares
e ao seu círculo mais restrito de amigos. Recordo-me de um ou dois contactos
por iniciativa do também já desaparecido Luís Roseira na antecâmara de uma das
suas campanhas presidenciais, a propósito de algumas questões da Região Norte. Estive
do lado oposto com a candidatura de Maria de Lurdes Pintassilgo mas do mesmo
lado na segunda volta contra Freitas do Amaral, depois de uma recuperação política
só ao alcance dos predestinados para a política. Voltei a estar do lado oposto
com Manuel Alegre, mas reconheci a sua espantosa abnegação de ir a votos e
sobretudo a sua capacidade de encarar a derrota como algo de intrínseco à própria
democracia. Estivemos de novo do mesmo lado apoiando António Sampaio da Nóvoa.
Tudo praticamente já foi escrito sobre Mário Soares e sobre o que ele
significou para a democracia portuguesa e como ele nos ajudou a combater as
derivas pseudorevolucionárias. Resta-me neste tributo singelo, focar-me em dois
temas.
Em primeiro lugar, gosto de personalidades que amem a vida, que a vivam com
paixão, elegância e entusiasmo, e que tragam para a política essa maneira de
estar, sendo genuínos, intuitivos, frontais, inteiros, cultos, não enjeitando o
confronto e não dissimulados, deprimidos, formais bafientos, cinzentos. Soares
estava no grupo restrito dos primeiros, fazer política era tão natural como passar
pela velha Sá da Costa no Chiado ara comprar um livro ou simplesmente para
conversar, deliciar-se perante um quadro de Pomar ou falar com um dos nomes
mais sonantes da política estrangeira, como Mitterand, Olof Palme ou outro qualquer.
O texto de Teresa de Sousa no Público de hoje é exemplar nessa vertente. A política
portuguesa não terá a mesma naturalidade.
O segundo tema tem que ver com o legado de Soares, que Marcelo e Sampaio tão
bem registaram, o primeiro na sua comunicação, o segundo em texto hoje também no
Público em edição especial. Os três objetivos colocados por Soares no Portugal
Amordaçado, democratizar o país abatendo o regime de Salazar e Caetano, descolonizar
e assegurar a integração na Europa foram por ele concretizados. Mesmo que o ódio
contra a descolonização circule ainda por aí, a história futura mostrará que,
nas condições concretas da época, dificilmente poderia ter sido encontrada uma
outra saída, sobretudo atendendo ao prolongamento desmesurado da guerra. Todos
os restantes foram concretizados e a Voz de Soares foi algo de decisivo na
Europa que então se construía.
Mas há um legado que fica para nossa própria responsabilidade. Soares
intuiu e escreveu abundantemente sobre isso que a Europa dos últimos tempos não
era a sua Europa e dos seus amigos de referência. Mas também compreendeu que
isso era em parte a consequência da social-democracia e do socialismo democrático
não terem compreendido a globalização e a necessidade de a recompor. A sua VOZ
já enfraquecida foi das primeiras a denunciar a degenerescência tecnocrática do
projeto Europeu e a reconhecer a necessidade de um outro rumo para a globalização.
Soares fez o que estava ao seu alcance, indignando-se e como é importante a
indignação vinda de VOZES que construíram e se bateram por alguma coisa.
Essa responsabilidade é nossa.
Seria bonito que nos empenhássemos na busca dessas alternativas como forma de
honrar a personalidade, o amar a vida e a VOZ de Soares.
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