(As eleições
americanas iniciaram uma perigosa deriva em matéria de denúncia dos acordos de
comércio livre, não apenas com Trump, mas também com Bernie Sanders e Hillary
Clinton, e as réplicas por
esta Europa sucedem-se a um ritmo impressionante, o que pensar de tudo isto ?)
Mal tomou posse, Trump riscou o nome do acordo comercial regional do TransPacífico,
questionou o NAFTA, mostrou intenções de renegociar o relacionamento com o Canadá
e o Acordo Transatlântico com a Europa lá irá também a capítulo. Diga-se em boa
verdade que, do outro lado do espectro político eleitoral, primeiro Bernie Sanders
e já no fim do período eleitoral a própria Hillary mostraram também intenções
(não sabemos o que fariam se tivessem ganho) de questionar os acordos
comerciais, principalmente o TransPacífico, acordo que os estrategas associaram
a um objetivo estratégico dos EUA compensarem o peso crescente da China nessa área
económica de infuência.
Portanto, uma primeira conclusão se impõe. Nos EUA, da direita à esquerda,
por muito discutível que seja esta classificação aplicada ao contexto americano,
há praticamente unanimidade no questionar dos acordos de comércio livre, o que não
deixa de constituir uma aberração. Mas as réplicas não ficam por aqui. Ainda há
dias, no debate das eleições primárias à esquerda em França, era espantoso ver os
candidatos a exprimir o protecionismo mais extremo, claro está não por ricochete
da eleição de Trump, mas por força do posicionamento político face a Marine
LePen. Proteges tu, protejo eu, é preciso acalmar as hostes, fornecendo-lhes a
ilusão de um artifício, que se todos o praticarem conduzirá a economia mundial
a consequências funestas que nem o populismo mais amargo conseguirá controlar.
Quando falo de questionar acordos de comércio livre, de âmbito regional alargado,
não estou a assumir que estejamos perante peças da mais pura inocência e bondade.
Já aqui neste blogue e em relação ao acordo Europa- EUA fiz referência à discutível
proposta de colocar as multinacionais fora da jurisdição e dos tribunais
nacionais e outros aspetos haverá que exigem combate cívico e político para retirar
esses acordos da defesa seguidista dos interesses das meta-empresas globais. O
que é relevante discutir é a rejeição desses acordos com a invocação de que
eles são a fonte de todo o mal que as populações das economias mais avançadas associam
à perda de emprego industrial que se vai vivendo pelas principais bacias
industriais europeias.
E regresso como sempre às raízes da minha formação, a economia do desenvolvimento.
Construí as minhas bases estudando fundamentalmente os que denunciaram os vícios
do comércio internacional livre como instrumento de reprodução do desenvolvimento
desigual entre economias de diferente grau de desenvolvimento que comerciam
entre si. Mas nesse plano essa denúncia era feita e fundamentada na perspetiva
dos menos desenvolvidos, sobretudo se as trocas realizadas não assegurassem vantagens
comparativas dinâmicas no longo prazo em termos de especialização produtiva e
produtividade. A economia do desenvolvimento acabou por amortecer essa denúncia,
destacando as vantagens de uma aplicação inteligente dos benefícios da transferência
de tecnologia e de conhecimento que se abria aos que chegavam ao comércio internacional
em último lugar, aplicação inteligente que muitos países não conseguem realizar
e que entram por isso em círculos viciosos de reprodução do desenvolvimento desigual
e verdadeiras armadilhas da pobreza.
Mas hoje a rejeição dos acordos de comércio internacional livre, de âmbito regional,
não se faz em nome dos mais fracos e menos desenvolvidos. Faz-se precisamente
contra eles e na perspetiva dos mais desprotegidos face à globalização nas
economias avançadas. O que é um contexto totalmente diferente. Como se recordam,
já chamei neste espaço a atenção para o esquecimento imperdoável que foi as
sociais-democracias europeias ignorarem por muito tempo os deserdados da
globalização. Perderam esse espaço de representação para Trump e outros que se
lhe seguirão. Mas isso não significa ter de rejeitar globalmente tais acordos.
Pelos estudos que se conhecem e Brad DeLong tem no VOX uma peça fundamental
sobre o assunto para a qual chamo a vossa atenção, o NAFTA, acordo que envolve o
México e outros países, pode ser responsabilizado por uma percentagem residual (em
torno dos 5%) da perda de emprego industrial dos EUA. Tal percentagem residual
pode ser ainda minimizada se tivermos em conta os empregos que terão sido
recuperados com mudança de atividade, embora sofrendo a penosidade do desemprego,
sobretudo se o período de recuperação de um outro emprego for longo.
A esquerda não pode deixar de manter uma reflexão crítica sobre os acordos
de comércio internacional livre. Mas essa perspetiva crítica não pode ser a de
rejeição global desses acordos. Uma economia global despida da
multilateralidade e com o protecionismo de vistas curtas a emergir como cogumelos
vai-nos conduzir a derivas perigosas. Uma esquerda a-histórica ou historicamente
ignorante é o pior que nos pode acontecer. E aqui a história é indesmentível: o
protecionismo generalizado, cego e dependente dos caprichos de mentecaptos conduz-nos
a becos sem saída. O comércio livre no interior da União Europeia, por exemplo,
não se combate, regula-se, aperfeiçoa-se e criam-se condições para o não
desenvolvimento desigual.
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