quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

CRIAR TALENTO OU CONSUMIR TRABALHO?





Um survey temático do Economist é sempre um pretexto obrigatório para parar e pensar. Assim acontece com o número do fim da semana passada dedicado à aprendizagem ao longo da vida, com uma daquelas capas que valem uma semana de atenção.

Até agora sabíamos que o progresso tecnológico padece de um traço intrínseco que em economia da tecnologia e do trabalho se designa geralmente de “skill bias”, ou seja, tende a suscitar o aumento de procura de novas qualificações, ao mesmo tempo que deixa para trás as qualificações mais baixas. A convivência com este enviesamento tem por contrapartida até agora não discutida que a resposta dos indivíduos é o prolongamento da educação-formação para os que estão em condições de suportar esse custo de alongar e diferir o momento de aposta na vida ativa, cabendo à formação profissional e a outras políticas ativas de emprego compensar junto dos menos qualificados o aumento do gap de qualificações a que estão obviamente sujeitos. Subjacente a este “skill-bias” claro que está a interação virtuosa entre inovação e aumento de educação que determinou períodos de crescimento económico fortemente concentrados nos países que melhor assumiram essa interação.

Em estreita companhia com a tendência para o aumento dos tempos de acumulação de educação por parte dos indivíduos surgiu entretanto a ideia da aprendizagem ao longo da vida, entendida como uma espécie de prolongamento transversal das necessidades de formação. Porém, à medida que se vai compreendendo melhor o momento atual da inovação tecnológica com os temas da robotização e inteligência artificial a gerar processos cada vez mais avançados de automação, surgem evidências que as conclusões estabelecidas do prolongamento do tempo de educação e a aprendizagem ao longo da vida podem ser questionadas e suscitar desafios para os quais precisamos de tempo e de adaptação criativa. O conjunto de artigos que o Economist dedicou ao tema constitui em meu entender uma das primeiras e bem-sucedidas tentativas de sistematização das alterações que vivemos, embora a inércia dos slogans modernaços permaneça.

Assim, por exemplo, a peça do Economist mostra que o propósito da aprendizagem ao longo da vida está longe de corresponder ao processo idílico que, por exemplo, os folhetos da Comissão Europeia ou da OCDE pretendem representar, como algo de acessível a todos os indivíduos. O que o Economist nos diz é que a aprendizagem ao longo da vida tem vindo a favorecer os mais capazes aumentando mais do que diminuindo a desigualdade gerada por via das qualificações. Há várias razões que podem explicar a perversidade de algo apresentado como gerador de convergência de oportunidades. Em primeiro lugar, não é líquido que os prolongamentos de educação estejam a dotar os beneficiários com as competências necessárias para um bom aproveitamento da aprendizagem ao longo da vida. Em segundo lugar, existe evidência segundo a qual a formação em posto de trabalho e no interior das empresas está em declínio, apontando o Economist o número de redução para metade nos EUA e no Reino Unido, o que é assinalável. O crescimento do emprego por conta própria como forma de adaptação ao mercado de trabalho tende a complicar a questão. Uma das evidências estatísticas impressionantes revelada pelo Economist é a queda acentuada que experimentou a intensidade cognitiva média das tarefas desempenhadas por licenciados nos EUA. O título do post de hoje vem de uma afirmação do CEO da Manpower: “as organizações estão a evoluir da criação de talento para o consumo de trabalho”.

Claro que o mercado empresarial compreendeu esta alteração e estão a surgir ofertas de formação que procuram responder a tal necessidade que o prolongamento da educação universitária não consegue assegurar. Mas os números disponíveis mostram que são os mais qualificados que mais recorrem a essa oferta, ajudando a cavar o fosso de que falava há pouco.

E aqui a peça traz-nos lições importantes, sobretudo para os países que chegam com atraso às tendências e percursos que outros trilharam. Assim, por exemplo, um ensino demasiado “vocacional” não é o melhor que pode oferecer-se hoje para proporcionar a desejada aprendizagem ao longo da vida e a sua democratização.

Quer isto dizer que estamos em plena transformação da relação inovação-competências-aprendizagem, navegando ainda à vista e com atenção necessária ao que vai acontecendo na fronteira tecnológica. É que argumento de que os “seguidores “ têm a vida facilitada exige cautela. Os que vão à frente estão em profunda mudança e por isso o estatuto de seguidor não é automático.

Não sei se as Universidades e todo o sistema de educação e formação estão cientes desta outra forma de precariedade. Mas conviria que estivessem, sobretudo pensando na escassez de recursos públicos.

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