quarta-feira, 20 de setembro de 2023

HABITAÇÃO

 


(Na leitura do Libération digital de hoje chamou-me à atenção um texto assinado por um coletivo de presidentes e de representantes de Câmaras Municipais europeias, em que infelizmente não reconheci a assinatura de nenhum autarca português, cujo tema é a absoluta necessidade de habitação para todos. Ou seja, ao contrário do que muita gente distinta criticou em Portugal ser uma fantasia do Primeiro-Ministro dirigir-se às autoridades europeias sobre essa matéria, esta tomada de posição coletiva de alguns dos municípios europeus vem mostrar que estamos a falar de uma questão bastante transversal na União, na sequência de particularidades do tempo de hoje. Esta matéria interessa-me de sobremaneira pois a gravidade do problema tanto pode ser vista como indicador da inépcia dos poderes públicos para lhe fazer face, como constituir um belo exemplo da hipocrisia generalizada que reina em muitos círculos políticos e de opinião cá do burgo sobre o pretenso poder do mercado. É nesta última direção que oriento o post de hoje.

 

Os signatários do documento atrás referido partem de uma evidência que convém ter sempre presente: o mercado tende a formar preços de habitação, exorbitantes ou não, mas que são seguramente desconectados do nível de rendimento que uma parte crescente das famílias, sobretudo das que vivem do seu trabalho e que não são rentistas de lugar elevado. Ou seja, antes de se falar da inépcia dos governos nacionais, regionais e locais, é de uma falha de mercado que se trata. Quando um determinado mercado não consegue assegurar o matching entre a oferta e uma procura solvente, isto é, uma procura capaz de se relacionar com essa oferta, esse mercado não está a funcionar.

Os signatários alertam para os riscos dessa falha e inépcia pública associada para a colmatar que são de três tipos – penalizam o emprego e a prossecução de níveis de emprego máximo, a inclusão social e a democracia, este último caso essencialmente determinado pela radicalização dos que não conseguem solver as suas necessidades de alojamento. O documento insiste muito e bem na relevância da falta de habitação nas proximidades e área de influência das bacias de emprego, afastando das cidades os trabalhadores da primeira linha identificada com a oferta de serviços essenciais para o pleno funcionamento das sociedades.

Como é óbvio, a dinâmica de exclusão associada a esta falha de mercado vem associada nas suas formas extremas a fenómenos como o dos sem-abrigo, colocando a política de habitação como uma das mais representativas entre as que exigem uma maior complementaridade com as políticas sociais, afastando decisivamente a ideia de que a política de habitação é exclusivamente uma política setorial.

Um aspeto interessante colocado pelos signatários é a enorme influência exercida pela financeirização da atividade, a partir do momento em que a política de habitação surgiu nos radares do investimento financeiro e dos fundos de investimento imobiliário. A lucratividade do investimento acaba por viciar todo o processo e orientar o investimento para as zonas de procura mais solvente, as quais, no contexto de incremento da desigualdade que se vive na generalidade das economias avançadas de mercado, tende a concentrar-se na oferta para os escalões de rendimento mais elevados.

O documento explicita algumas medidas necessárias como o controlo de rendas, a aplicação de taxas dissuasoras sobre alojamentos sem ocupação, a limitação do alojamento turístico de curta duração e até a expropriação de propriedades ditas institucionais. Face a estes exemplos interroguei-me se andava por aí na União algum movimento de coletivistas exacerbados, comparando com a reatividade nacional no debate sobre o pacote de habitação do Governo.

Por cá, Luísa Salgueiro, na qualidade de Presidente da Associação Nacional de Municípios, veio reconhecer atrasos na intervenção pública municipal na correção deste problema, sublinhando que não existe um problema de financiamento para a resposta necessária. É um facto que o PRR, com taxas de cofinanciamento de 100%, veio acelerar a capacidade dos municípios responderem às necessidades identificadas nas sujas Estratégias Locais de Habitação. Pergunta-se então porquê os atrasos?

Em meu entender, duas razões principais explicam a situação, uma de contexto atual e uma outra de acumulação de inépcias no passado.

No contexto atual, a construção civil atravessa uma fase de grande pressão, designadamente em termos de força de trabalho indiferenciada e especializada, que reduz a capacidade de oferta em tempo oportuno. É uma questão particularmente relevante para o financiamento PRR, muito exigente em matéria de calendarização.

No contexto do passado, a situação atual é muito condicionada pela escassez de intervenção pública desde o período do programa de erradicação das barracas. Essa escassez (ou inépcia se quisermos ser mais contundentes) traduz-se obviamente em necessidades acumuladas para o presente que nunca serão colmatadas em tempo útil, pois não é possível fazer em três ou quatro anos o que deveria ter sido feito em dez ou mais anos. E não é apenas uma questão de ambição, que poderia ser maior, de acordo. É simplesmente um problema de exequibilidade, o tempo em construção civil não pode ser comprimido. Ponto.

 

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