sexta-feira, 15 de setembro de 2023

QUESTÕES DE COMÉRCIO INTERNACIONAL

 


(Numa altura em que o Amigo Professor Alfredo Marques se apresta a apresentar na Associação Portuguesa dos Economistas, em Lisboa, o seu livro Comércio Internacional e Crescimento Económico de Longo Prazo, onde provavelmente aprofundará temas tratados na sua tese de doutoramento, trago para o post de hoje três temas da atualidade mais recente desse mesmo comércio internacional. Nestes temas incluo também a bastante estranha paragem de atividade da AutoEuropa, que me parece algo difícil de entender dada a dimensão do grupo empresarial, que transformo numa questão algo provocatória: será que é boa gestão manter uma oferta deste calibre e dimensão dependente de uma única fonte de abastecimento, por mais sofisticada que seja o material em falta? Os temas em si são aparentemente dispersos e aparentemente não apresentam nada que os una e lhes dê um sentido coerente. Mas se pensarmos melhor eles anunciam algumas linhas de transformação global que para uma economia aberta e fortemente dependente da procura externa como a nossa, em redor dos 50% independentemente de saber se o poderemos ou não manter, terão de ser necessária e prudentemente fonte de atenção. Mas os 50% de Portugal ao pé e em confronto com os 93,3% das exportações no PIB do Vietname são uma brincadeira de criança.)

 

 Começo a reflexão por dois surtos ou booms de exportação, de origens geográficas e culturais bastante diferenciadas.

O boom exportador dinamarquês, que assenta num incremento substancial da produção de um determinado produto, tem por origem a descoberta científica e clínica de um novo medicamento para a diabétis, que é simultaneamente uma fonte “miraculosa” de emagrecimento, mesmo para os que não apresentam indicadores de glicémia elevada no sangue.

O Ozempic (comprimidos) e o Wegovy (injeção) são os produtos que a Novo Nordisk tinham aprovado para o tratamento da diabetes e que se revelaram com efeitos significativos na redução da obesidade, provocando uma corrida aos medicamentos não necessariamente para a terapia dos diabetes, mas abrangendo uma larga massa de doentes esperançados em reduzir por essa via a sua obesidade. Claro que se tratou de uma pressão problemática sobre os sistemas nacionais de saúde, mas do ponto de vista da produção e da exportação significa que estamos perante uma nova fonte de um “boom” exportador, neste caso gerado pelo conhecimento científico e pela I&D empresarial em matéria de saúde.

Este caso é curioso porque toda a literatura do desenvolvimento estudou as consequências dos booms de exportação, mas essencialmente com base em exportação de produtos naturais ou energéticos. É a primeira vez que um produto gerado pela economia do conhecimento ascende ao estatuto de boom de exportação, sendo necessário rever a teorização dos efeitos normalmente associados a esses booms. Normalmente a subida do preço relativo dos serviços é uma consequência dos mesmos, por via essencialmente do aumento da despesa privada de consumo que o novo surto de exportação tende a provocar. No caso vertente do Ozempic, é necessário rever a teorização disponível, sobretudo na medida em que as sobrereceitas de exportação podem ser utilizadas em reinvestimento de atividades de I&D, não provocando o efeito esperado de subida dos preços relativos dos serviços que a literatura identifica.

Antecipo que outros booms de exportação com esta origem possam estar na calha, sobretudo na sequência da forte concorrência oligopolística que estas descobertas irão provocar, num mercado de produtos clínicos e farmacêuticos cada vez mais concentrado, acompanhando aliás o enorme aumento do investimento na área da I&D da saúde e das ciências da vida em geral.

O outro caso curioso de boom exportador está relacionado com a transformação da China num dos mais importantes exportadores de automóveis, designadamente de viaturas elétricas, não propriamente acompanhado de um boom de produção, mas essencialmente determinado por um processo habilmente montado pelas autoridades chinesas de transferência do mercado interno para o mercado externo. De qualquer modo, a evolução das exportações chineses de automóveis e de telemóveis deve ser seguida com atenção redobrada. A razão é simples. Estarão os Chineses a saber contrariar a política deliberada da administração americana (enquanto conversa com as autoridades chinesas para amenizar a agressividade) de bloquear ou atrasar a autonomização tecnológica da China, dificultando-lhe o acesso a tecnologia ocidental a partir da qual possam construir as suas próprias trajetórias? Não tenho conhecimento empírico suficiente para discernir se, no caso dos automóveis, os Chineses estão ou não a praticar dumping. O discurso comum americano bate muito nessa tecla, mas não estou convencido. No caso dos telemóveis, reina pelo mundo uma grande curiosidade relativamente à colocação em mercado do novo Huawei (Mate 60 PRO), para se avaliar se a indústria e a I&D chinesa conseguiram superar os controlos de exportação impostos sobretudo pelos americanos e ingleses em matéria de semicondutores. Conseguiram os Chineses gerar tecnologia própria?

Dois booms de exportação, com origens totalmente diferenciadas, mas ambos sugerindo que o paradigma do comércio internacional está em profunda mudança.

E por falar nisso regresso ao tema da AutoEuropa e da suspensão da sua atividade por quebra de fornecimento de uma peça crítica para a laboração da fábrica de Palmela.

Estranho que ninguém na comunicação social portuguesa tenha colocado a questão de saber as razões para a produção de um grupo empresarial como a Volkswagen estar dependente de uma única fonte de abastecimento, neste caso situada algures na Eslovénia. Pode ser isto considerado um exemplo de boa gestão? Ou a quebra de fornecimento determinada por um acontecimento natural pode ser entendida como uma oportunidade providencial de redimensionamento da fábrica de Palmela? O silêncio que se abateu sobre esta questão, sepulcral no tom e na diversidade de abordagens, causa-me uma grande estranheza.

 

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