(A capacidade nacional de se entreter com questões de lana caprina, como por exemplo aceitar de bom grado que uma personagem de terceira dimensão, não é o Twilight zone, como Marques Mendes controle o tempo político em Portugal dar-me-á sempre que pensar. Mesmo tendo idade e experiência suficientes para obter uma carapaça contra esta mediocridade nacional, estes devaneios pelo acessório, ignorando a robustez do essencial é coisa que me tira do sério. Sinal de resistência talvez ou de rabugice estrutural, definam a vossa opção, mas estamos em tempo de regressar às coisas que importam. Ora por estes dias tomámos conhecimento público que a AutoEuropa vai parar a produção lançando temporariamente trabalhadores em lay-off com 95% da remuneração. Não se trata de problemas internos à fábrica de Palmela, mas antes de consequências da disrupção das cadeias de valor globais, comunicada como uma vulgar falta de peças. Trata-se de matéria preocupante, pois está em causa um dos campeões das nossas exportações e a sua interrupção obviamente que tem implicações no nosso equilíbrio externo. A notícia passou quase despercebida com a bravata do Mendes de domingo à noite, que finalmente pode expressar o que passava na alma e na tão orquestrada forma de sucessão ao comentador Marcelo preparada com o patrocínio da SIC. Mas fui pesquisar algo mais no sentido de perceber como a indústria automóvel se apresenta na Europa e consequentemente em Portugal, já que por ela passa grande parte da mudança estrutural do nosso tecido industrial. A McKinsey fez o seu trabalho e proporcionou-me o conhecer certo para escrever alguma coisa de prospetivo. E as notícias não são famosas …)
A nível europeu, a importância da indústria automóvel não pode ser ignorada. Os números impressionam: quase 7% do PIB europeu, cerca de 14 milhões de empregos (cerca de 6,1% do emprego total) e quase 30% das despesas totais de I&D. Mas se virmos a situação do setor em termos de dinâmica recente, a evolução será tudo menos promissora, mesmo que possamos imaginar que a situação é parcialmente reversível.
O gráfico que abre este post, de autoria da McKinsey, impressiona pela crueza dos números. Desde 2017, a produção automóvel europeia perdeu cerca de 26% de quota de mercado mundial e o que é mais surpreendente é que, ao contrário da perda dos incumbentes, o emergente do setor ganhou, desde essa data, 8% de quota de mercado. Para isso muito terá contribuído o desempenho chinês em termos de automóveis elétricos. E se nos reportarmos à área crítica das baterias, a venda de baterias elétricas é dominada por produtores emergentes de veículos elétricos, cabendo aos incumbentes, essencialmente europeus, uma quota de apenas 20%.
Mas as perspetivas são ainda mais aterradoras quando se analisa no gráfico acima a influência chinesa em aspetos centrais da cadeia de valor da produção de baterias. Os pedaços de círculo negros, que refletem o peso da concentração chinesa, não criam ilusões a ninguém. A dimensão crítica da produção de veículos elétricos foi conquistada, obviamente em termos não definitivos, pela China e qualquer estratégia de inversão dessa dependência não pode passar à margem deste ponto.
A China compreendeu primeiro do que ninguém que o comportamento do preço dos veículos elétricos representava o principal fator de adesão dos consumidores à indeterminação do elétrico, atingindo valores que a McKinsey estima em 20 a 30% mais baixos do que os preços europeus para veículos de qualidade e desempenho similares. E convém não esquecer que a União Europeia não tem o mesmo. de vinculação e arrastamento de decisões que os EUA apresentam nos momentos críticos.
Quer isto significar que a AutoEuropa enfrentará do ponto de vista europeu um horizonte carregado de indeterminação, estimando-se uma dupla frente de problemas: a recuperação de quotas no mercado mundial e a dura luta no plano europeu para assegurar o melhor desempenho possível nessa recuperação.
Espero que a concertação capital-trabalho no interior da fábrica de Palmela compreenda e integre esta dupla dimensão e que o grupo reconheça o esforço português.
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