Parece já a caminho de ser definitivamente enterrada a peregrina questão suscitada por uma petição visando remover uma estátua há onze anos colocada no Largo Amor de Perdição no Porto. Os 37 causadores vieram a público lançar a coisa em modo estranhamente duro em termos palavrosos, Rui Moreira aderiu a ela com uma alusão a uma estátua “pornograficamente horrenda” e uma inaceitável referência à sua concordância “com o que tão ilustres cidadãos nos suscitam”, o autor Francisco Simões reagiu surpreso mas moderado e outros cidadãos (menos ilustres?) mobilizaram-se com sucesso no sentido de uma petição alternativa enquanto o presidente da Câmara reafirmava que não reverteria a sua decisão para logo de seguida aparecer repentinamente a voltar atrás com a mesma por lhe ter sido informado que a doação da estátua previa a sua colocação naquele local após aprovação pelo Executivo Municipal de 2012; tudo com os 37 ilustres (e a maioria são mesmo gente ilustre, e sobretudo de bem!) a brindarem os seus atónitos concidadãos com um ensurdecedor silêncio. Como portuense com responsabilidades, não posso aqui assobiar para o lado perante um incidente tão estranho quão escusado, feito de um raro amontoado de erros incompreensíveis; todavia, e por não querer contribuir para prolongar um agonizante “chover no molhado”, opto então por arquivar o assunto como uma especial conjunção de momentos maus, apenas vos deixando ademais com uma transcrição dos comentários a propósito feitos por José Pacheco Pereira em “O Princípio da Incerteza” de Domingo; até pela sua potencial utilidade para efeitos introspetivos e/ou memória futura e sanidade cidadã.
“A maioria dos subscritores para a remoção da estátua eram as últimas pessoas que eu pensava que alguma vez assinavam um papel a pedir a remoção de uma estátua, ainda por cima com aqueles argumentos. Aquilo foi um vaipe que passou. E muitos deles são meus amigos e são gente que eu tenho em grande consideração. Mas é uma asneira completa!
Por uma razão muito simples: as guerras culturais ― isso está bem analisado para os Estados Unidos e para o Partido Republicano, mas é igualmente verdade para a Europa e é igualmente verdade para Portugal, não por acaso que o Chega as usa bem ― sempre foram um dos principais fatores de radicalização política a favor dos setores mais radicalizados da Direita; a guerra cultural, de um modo geral, antecede essa radicalização. Não tem pés nem cabeça!
Vamos deixar o argumento do gosto, porque se a gente vai ao argumento do gosto eu apresento duzentas ou trezentas estátuas ou obras públicas que deviam ser retiradas por questões de gosto. (...) Também não é só o meu, o gosto não é uma coisa inteiramente subjetiva; há padrões, há o kitsch, que em alguns casos funciona bem... não, não vamos discutir a questão do gosto. O argumento do gosto não serve.
Evidentemente, todos os outros argumentos são complicados. Há, em primeiro lugar, o Camilo vestido e supostamente a Ana Plácido, ou uma representação da Ana Plácido, nua (...); porque é, está em frente do sítio onde ele esteve preso por adultério... Vamos lá a ver: todos os ingredientes para uma interpretação moralista ou feminista radical, o que eu penso que essas pessoas certamente não são, estão presentes na discussão desta estátua. De facto, a estátua é de mau gosto mas representa o Camilo e supostamente a Ana Plácido (provavelmente nunca viram fotografias da Ana Plácido que não era certamente semelhante à senhora que lá está)...
Nós temos hoje uma indústria da irrelevância; hoje, as redes sociais e estes mecanismos, e é por isso também que isto é errado, participam inteiramente da indústria da irrelevância. É como esta história do sexismo do Presidente da República. É uma indústria da irrelevância que é evidente que em muitos casos usa a fragilidade do mais fraco; e em todas as histórias que envolvam homens e mulheres, as mulheres são sempre a parte mais fraca. Eu não tenho nenhuma dúvida sobre isto: que há sexismo, há sexismo; que há machismo, há machismo; mas, do meu ponto de vista, isto não é a melhor maneira de combater cada uma dessas coisas...
Quanto à própria ideia da remoção das estátuas: por razões de matéria colonial, há centenas de estátuas no País que poderiam ser removidas e há quem queira removê-las por essa razão... Agora, eu quando vi aquilo não queria acreditar que aquelas pessoas tinham assinado aquele papel para remover a estátua e que Rui Moreira assim tinha decidido; vá lá que depois lhe veio o bom senso e ele arranjou um pretexto, que foi ter sido decidido por unanimidade e coisa e tal. Mas isto é mau e tira-lhes autoridade quando se tiverem de criticar os apelos à remoção de outras estátuas; porque quando se entra neste jogo...
Eu até estive para trazer para este programa uma série de quadros clássicos, alguns dos quais estão em igrejas, dos grandes pintores da História do Ocidente, chamemos-lhe assim, em que a figura feminina é tratada, embora evidentemente com qualidade artística, de uma forma muito próxima da maneira como a estátua a trata.”
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