domingo, 17 de setembro de 2023

A ESCULTURA

 


(Já me escasseia a pachorra para aturar algumas manifestações de opinião de grupos de pessoas que a comunicação social considera exemplos de notáveis. Infelizmente, o Porto, que já se notabilizou pelo seu amor à liberdade, parece nos últimos tempos estar mais interessado em critérios estéticos e de gosto, discutíveis obviamente, ou de aproximações à moralidade pública. A estátua de Camilo e de uma figura feminina esteve no centro das atenções, especialmente porque um grupo considerado de notáveis, resolveu insurgir-se contra a referida escultura e tentar fazer-se ouvir junto de Rui Moreira, nos últimos tempos com manifesta dificuldade de encontrar um equilíbrio compatível com o estatuto de Presidente da Câmara. Foi a inicialmente precipitada abordagem à situação do Stop, que corrigiu depois com a demonstração das condições de insegurança do espaço, foi o bate-boca com Sérgio Conceição como se a Câmara Municipal tivesse de se preocupar com o mau feitio do impulsivo treinador e agora a cedência e depois também correção do caso da estátua de Camilo. Espanta-me sinceramente que gente com estatuto e prestígio como algumas das personalidades que assinaram a primeira petição que solicitava a retirada do espaço público da escultura percam tempo, ou então estão já na armadilha da desocupação, e não o aplique em questões mais relevantes para o desenvolvimento da Cidade. Mas, afinal, parece tudo ter voltado à estaca zero, seguramente para enfado dos tais notáveis que embirraram com aquela forma de ocupação de espaço público.

Pelo que pude compreender as razões que estiveram na origem do pedido dos notáveis para retirar do espaço público a referida escultura eram essencialmente de qualidade estética (no grupo signatário estavam críticos de arte que sabem do ofício, como Bernardo Pinto de Almeida, entre outros) e de alegada ofensa ao espírito feminista de Ana Plácido, que estaria naquela representação totalmente ultrajado, colocando a imagem feminina em situação de submissão plena. E houve quem mesmo, creio que Ilda Figueiredo, que se insurgiu contra o facto da figura feminina estar desnudada, ao passo que Camilo se apresentava rigorosamente vestido e a rigor. Ó insulto dos insultos!

Não sei onde é que alguns dos signatários foram buscar a associação da figura feminina da obra a Ana Plácido. A figura de Camilo essa é obviamente visível e depreende-se que foi essa a intenção do autor da escultura. Já a representação da figura feminina, ao contrário da de Camilo, será provavelmente mais simbólica, já que creio que ninguém conseguirá a partir da anca e das nádegas da figura feminina conseguir identificar o corpo de Ana Plácido. Não haverá evidência histórica para o demonstrar e daí admitir que o objetivo de representação fosse mais simbólico. E o escultor autor da obra parece não ter optado por representar uma figura feminina a fumar um valente charuto!

Quanto ao critério estético e do gosto da representação não o discuto, podendo mesmo admitir que os signatários críticos de arte estejam no seu perfeito juízo ao enunciarem a pretensa falta de qualidade da obra. Mas será que o critério do gosto e da avaliação estética é suficientemente objetivo para permitir inverter uma decisão municipal que tudo indica percorreu o seu processamento normal? Onde então parar para assegurar que as representações artísticas de embelezamento e preenchimento do espaço público correspondem a padrões sólidos e consistentes, não provocando a ira e indignação de outro qualquer grupo de notáveis, incomodados quando usufruem desse espaço público (Largo Amor de Perdição, o que certamente terá pesado na criação do escultor) e dão de caras com obras que não são bem recebidas e apreciadas?

Sabemos que as sociedades estão sensíveis a matérias que passariam despercebidas no passado e que existe hoje uma perigosa deriva de apreciar obras não no contexto histórico e social em que foram produzidas mas erradamente transpostas para o mundo atual de outros valores e preocupações. Por isso admito que o preenchimento do espaço público tenha de ser mais cuidadoso. Mas, neste caso, parece-me que é simplesmente o caso de um grupo de “notáveis” que se ergueram, por iniciativa própria, à pretensão de serem guiões da estética e do rigor de representação histórica em nome do modo de ver e interpretar as coisas à moda do Porto.

Resta-me a conclusão que existirão matérias bem mais pertinentes e portadoras de futuro para que todos os notáveis desta Cidade apliquem o seu conhecimento de forma mais útil e mais demonstradora de caminhos a seguir.

 

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