(O Open de Ténis dos EUA é daqueles eventos que gostaria um dia de ter vivenciado e pela aragem que corre já não vejo jeito de concretizar, até porque teria sempre de fazer a difícil escolha de abrir os cordões à bolsa para viver o Roland Garros, Wimbledon ou Flushing Meadows. Felizmente que os canais de cabo e a transmissão do evento de Nova Iorque pela Eurosport, por vezes em dois canais, em canal aberto, para o cabo evidentemente, me permitiram ao longo das duas semanas do evento seguir em férias e no primeiro fim de semana pós-férias alguns jogos que mereceriam outro poder analítico que não aquele que modestamente posso oferecer. É nestas ocasiões que me lembro da peça literária suprema sobre o ténis, mais propriamente sobre um dos meus ídolos, Roger Federer. Estou a falar do ensaio de David Foster Wallace sobre o estilo de Federer e que foi publicado em português pelas edições Bazarov, numa tradução excelente de Bruno Vieira Amaral, inserido na obra A teoria das Cordas. Bem gostaria de ter o talento de Wallace para descrever os jogos que determinaram esta crónica. Os jogos em que concentrei a minha atenção para organizar esta crónica foram a final feminina entre Coco Gauff e Aryna Sabalenka, as meias finais masculinas entre Medvedev e Carlitos Alcaráz e Djokovic e Shelton e a final de ontem à noite entre Djokovic e Medvedev. Qualquer apreciador e jogador, modesto, de ténis como eu tem nestes jogos valioso material para recordar, tamanha foi a diversidade de golpes e jogadas impossíveis. Mas o ponto em que gostaria de me focar é na regularidade que em meu entender dominou todos estes encontros inolvidáveis: mais do que o poder da técnica e da grandeza física, que é exigida num ambiente de 80 a 90% de humidade e em court fechado, foi o poder da Mente que justificou as vitórias nestes quatro encontros. Sim, se há desporto em que a consistência da mente é diferenciadora, o ténis é para mim aquele em que isso é indiscutível.)
Comecemos pela final feminina. Confesso que receei pela sorte da jovem Coco Gauff, tamanha era a pressão que se abatia sobre ela, com aquelas cerca de 20 e tal mil pessoas a bater-se por uma vitória americana, depois de na meia-final Sabalenka ter eliminado outra atleta americana, Maddison Keys, e principalmente depois de Keys ter cilindrado a bielorussa por 6-0 no primeiro set. Sabalenka tem um ténis abrasivo e arrasador, com uma força e talento demolidor, sobretudo naquele estilo de jogadas não muito longas e com uma força e velocidade de pancada que não é muito comum presenciar no circuito feminino. Mas do outro lado Coco Gauff não é uma atleta qualquer. Embora pressionada por ter chegado demasiado cedo ao circuito profissional, dizem-me que aos 13 anos era já uma atleta de respeito, basta olhar para o rosto de Coco em plena batalha para se compreender que está ali uma jovem determinada e com um percurso de coerência preparado ao milímetro e largamente valorizado pela chegada de Brad Gilbert ao acompanhamento técnico da jovem americana.
Sabalenka entrou arrasadora e despachou o primeiro set com aparente facilidade. Mas a resiliência defensiva de Gauff estava lá, intacta e desconcertante, prolongando o mais possível as jogadas, sabendo que mais tarde ou mais cedo os erros não forçados de Sabalenka iriam aparecer, como aliás aconteceu. De uma inteligência tática e de uma destreza técnica insuperáveis, Gauff começou a obrigar Sabalenka a golpear bolas bastante altas, com uma elasticidade defensiva que dá cabo da paciência a uma santa e Sabalenka é demasiado impetuosa para ter essa temperança. O poder da mente venceu claramente a força arrasadora da técnica de Sabalenka e sobretudo a sua impetuosidade.
A meia final masculina entre Alcaráz e Medvedev mostrou uma vez mais que o ténis insuperável do espanhol carece ainda de muita maturidade mental, que ele próprio confessa ainda não ter, apesar da vitória de Wimbledon sobre Djokovic ter mostrado que não demorará muito tempo a consolidar, se o físico e os excessos da competição não o atraiçoarem. A frieza mental do russo, num ténis que parece desconjuntado mas que alcança pancadas inimagináveis para um jogador medianamente dotado, descobrindo trajetórias que não aprecem nos manuais, conseguiu alcançar um desempenho notável, talvez o seu melhor jogo na sua carreira. Mente e inconsistência de maturidade opuseram-se em dois atletas física e tecnicamente do melhor que o ténis já teve. A mente venceu.
Djokovic são 36 anos de mente à prova de bala. O jovem americano Shelton bem tentou na outra meia-final destruir essa consistência, acrescentando ao grupo dos vencedores de amanhã mais um nome (Sinner, Rune, Rudd e outros mais). Mas a capacidade e determinação de Djokovic vencer adversidades e momentos menos bons é neste momento imbatível, a não ser por Alcaráz em dia de inspiração. Talvez os Açores tenham feito bem a Djokovic. A mente está cada vez mais forte e consistente.
A final com Medvedev mostrou isso de novo. Nem naqueles momentos inesquecíveis do segundo set em que, milagrosamente, o sérvio ganhou o tie-break e em que o colapso físico esteve ali tão perto (de novo a humidade a adensar o esforço de duas semanas de competição violenta) a mente se quebrou. Medvedev perguntava no fim a Djokovic com a piada fria que lhe é peculiar “quando é que te reformas”, como que dizendo, ainda aspiras por mais vitórias, não te chegam as que já tens? É de facto impressionante como a força mental pode resistir quase até ao colapso físico. Este Sérvio deveria ser um caso de estudo e entregue à ciência!
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