sexta-feira, 29 de setembro de 2023

ATÉ SEMPRE, FERNANDO ALVES!

Fernando Alves (FA) brindou-nos durante décadas a fio com uma pequena crónica matinal na TSF intitulada “Sinais” (que várias vezes aqui inspirou alguns posts). Fui hoje surpreendido com a sua despedida, aliás talvez não completamente inesperada atenta a situação que atravessa a empresa que gere aquele canal radiofónico e que já conduziu a uma inédita greve dos respetivos jornalistas e trabalhadores. Nestas coisas, e para além do surdo protesto do cidadão que sou (porque apelos leva-os o vento e porque, seguramente, FA sabe bem o que está a fazer), talvez apenas nos reste agradecer o tanto que nos foi sendo dado ao longo do tempo. Faço-o com sinceridade e remeto os nossos leitores para o texto da última crónica de FA, a de hoje (“O olhar perto do chão”):

 

No seu mais recente livro, "Montevideu", que nos é apresentado como "uma ficção verdadeira", Enrique Villa-Matas descreve-nos um dos seus vários encontros com Tabucchi a quem muito admirava desde "Mulher de Porto Pim", esse livro que, assim o vê o catalão, trata "com leveza poética" questões "difíceis e complicadas". Os dois haveriam de tornar-se amigos, partilhando experiências em várias cidades, em conferências literárias ou movidos pelos fios invisíveis de um acaso feliz.

Certa vez, sentados numa esplanada nas margens do Arno, em Florença, Tabucchi contou a Villa-Matas que tinha chegado à fala com um tipo estranho, um vagabundo que muito impressionara o amigo, em Paris.

Villa-Matas guardava do vagabundo uma imagem vincada. Todos os dias, ele sentava-se no chão, à porta de uma livraria, no Boulevard Saint-Germain. Em frente, havia um quiosque de jornais. O que retivera a atenção de Villa-Matas, nesses longínquos dias parisienses? O modo elegante como o vagabundo se comportava, cumprimentando quem entrava e saía da livraria. Por vezes, levantava-se, fumando, com o olhar perdido no horizonte, um magnífico havano. Durante a maior parte do tempo, permanecia sentado no cartão de vagabundo, lendo um clássico. Durante algum tempo, enquanto viveu em Paris, o catalão viu com muita frequência o estranho vagabundo. Anos depois, em Florença, conversando com Tabucchi, este confidencia que, certa vez, chegara à fala com o homem. Estava sozinho em Paris, vagueou pelas ruas e deu com aquele homem sentado no chão lendo o seu clássico. O vagabundo convidou-o a que se sentasse a seu lado, no chão, apreciando o mundo desse patamar ao nível dos pés. Tabucchi não hesitou. Sentou-se ao lado do vagabundo, ficaram ambos durante algum tempo em silêncio, observando os que passavam por eles com total indiferença.

Na noite estival de Florença, Tabucchi contou a Villa-Matas o modo como o vagabundo quebrou o silêncio. Ele nunca mais esqueceria aquelas palavras. Disse-lhe o vagabundo: "Estás a ver, amigo? Daqui uma pessoa pode vê-lo muito bem. Os homens passam e não são felizes".

Partilho convosco esta passagem do magnífico livro que me ocupa por estes dias, na última crónica que assino nesta rádio. A meu modo, vou ocupar as horas, em grande medida, um pouco à maneira do vagabundo desta história. Não penso sentar-me no chão, à porta de uma livraria. Mas procurarei, muitas vezes, bancos de jardim, à sombra. E assim me deixarei ficar, absorto, tomando notas para uma improvável emissão futura, feita de silêncios e de palavras elementares, assim me pouse no ombro a ave clandestina. Ambição chã. Ficarei a ver passar os transeuntes com o seu ar triste, como só os vagabundos sabem detectá-lo. Até sempre.


(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com)

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