(Nos últimos tempos, o desempenho económico da Alemanha está na berlinda. Sucedem-se os artigos na imprensa especializada, como o Economist, anotando que o motor económico da Europa parece em riscos de gripar ou, pelo menos, de entrar em menor rendimento. O problema é naturalmente alemão, sobretudo para a coligação no poder, que começa a ter pouco para mostrar, mas é também e fundamentalmente um problema europeu, pois os números mais recentes até me surpreenderam tamanha é a diferença entre o contributo da Alemanha e dos restantes países em matéria de indústria transformadora. Esta perda de fôlego, digamos industrial, do motor alemão constitui matéria de valioso debate. Estaremos perante falhas de desempenho de um modelo económico e de organização industrial apontado como modelo de orientação para o ressurgimento industrial pretendido, combatendo terciarizações precoces? Ou a imprevidência com que os poderes políticos na Alemanha abordaram a sua dependência energética de fontes politicamente pouco fiáveis como a Rússia está a provocar a extensão no tempo de problemas estruturais aos quais a adaptação tem sido problemática? Ou será que ainda não estamos a compreender bem os novos rumos da organização da economia mundial e das cadeias de valor globais e a economia mais avançada é a que melhor está a espelhar os custos e desafios enormes dessa adaptação necessária? Matéria e opções aos quais não podemos ficar indiferentes.)
De facto, quando consultamos as previsões macroeconómicas mais populares e recentes, a dissonância entre o que é projetado para a Alemanha e para os outros países e blocos motores da economia mundial é surpreendente e indiscutível. A Alemanha é a única economia relevante que vê as projeções revistas em baixa, adensando a realidade recessiva, ao passo que os restantes blocos e países vêm as suas projeções revistas em alta.
A importância do modelo alemão de industrialização fazia-se sentir sobretudo na evidência de que a indústria transformadora podia ser fonte de bons empregos e bem remunerados. A experiência alemã confrontava positivamente com, por exemplo, a perda de dignidade e valia dos empregos na indústria transformadora americana, em que o comportamento do salário real (ver gráfico apresentado por Paul Krugman na sua última crónica no New York Times) evidenciava bem como a indústria transformadora deixou de ser nos EUA a fonte seguro de um emprego bem remunerado, algo ainda mais visível na industria automóvel em que a queda do salário real é ainda mais pronunciada.
Como é óbvio, não é bonito bater no ceguinho, sobretudo depois deste abandonar funções. Mas convém não esquecer que a irrepreensível liderança de Angela Merkel no plano internacional quando é confrontada com a realidade fria e objetiva de uma avaliação distanciada da sua governação mais económica surge manchada por não ter conseguido ou querido inverter a pretensa confiança que o modelo económico alemão alimentou quanto ao fornecimento de gás natural pela Rússia. Não estou a insinuar que foi com o governo da CDU que se iniciou essa dependência. Mas o que parece indiscutível é que Merkel não corrigiu ou mitigou a situação, sendo por isso a Alemanha apanhada numa situação de grande fragilidade quanto a essa dependência. A história da articulação com a economia chinesa é distinta, mas também aí a economia alemã se viu perante uma situação de difícil inversão. A sua indústria transformadora ficou excessivamente dependente da articulação com a indústria chinesa, pelo que a mudança de regras na economia mundial acabou por perturbar a situação alemã, tratando-se por isso de conseguir concretizar duas diversificações ao mesmo tempo, a energética e a de mercados de importação e exportação.
Não será por acaso que são os setores mais atingidos pela dependência energética que revelam impactos mais penalizadores em termos de crescimento, podendo admitir-se que se trata de adaptações que exigem tempo de concretização.
Mas a relação económica da Alemanha com a China revela também alguma ingenuidade na perceção do modo como o comércio internacional pode evoluir a partir de uma relação duradoura. As exportações alemãs para a China tiveram sempre um peso muito relevante na geração do produto alemão. Mas do lado de lá estava uma economia decididamente orientada para uma pretensão de gerar uma trajetória tecnológica própria, aprendendo com as suas importações provenientes da instalada indústria transformadora alemã. É um caso típico de avaliar com rigor as hipóteses de transferência de tecnologia e com conhecimento próprio gerar uma trajetória de autonomia tecnológica. Tudo indica que foi isso que sucedeu com as exportações alemãs para a China. E nestas coisas de histórias mais heterodoxas de cópia de tecnologia sabemos que os Chineses são particularmente eficazes, não olhando a meios para lograr atingir os seus objetivos.
Outra coisa bem mais discutível é a hipótese da transição para a economia verde ou de mais baixa intensidade em carbono ter sido concretizada na Alemanha com alguma displicência e ingenuidade. Não estou seguro quanto à consistência desta tese, mas há economistas como Noah Smith que o afirmam sem hesitação: “A transição para uma dependência zero do gás natural russo seria mais fácil se a Alemanha não estivesse simultaneamente a braços com um movimento de descarbonização do tipo decrescimento. Na verdade, o atual primeiro-ministro alemão Olaf Scholz, que inclui no seu governo o Partido dos Verdes comprometeu-se em campanha eleitoral com o encerramento das unidades de energia nuclear. No início do século, as unidades nucleares forneciam cerca de um terço da energia elétrica do país, reduzido agora a zero.”
A questão do nuclear pode ser então vista como um exemplo da confusão que pode ter existido entre propósitos de descarbonização e de decrescimento, o que poderá ter conduzido a indústria alemã a perdas de crescimento desnecessárias. É uma boa explicação pois combina uma fragilidade determinada por erros de posicionamento (a dependência energética face à Rússia) com possíveis erros de abordagem á questão da descarbonização.
Mas existem outros registos que mostram que a economia alemã tem mostrado dificuldades em acompanhar a revolução digital e tem perdido relevância e poder no âmbito da indústria do software. E ainda mais surpreendente são as lacunas identificadas na resposta a necessidades de habitação.
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