(O crescendo de tensão mundial que a invasão russa da Ucrânia gerou teve, entre outros efeitos, o esquecimento temporário, na mais bondosa das interpretações, de algumas feridas mundiais que deveriam desassossegar as nossas consciências ocidentais. O Afeganistão, após o abandono dos americanos e a entrega da sociedade afegã aos ditames dos Talibãs, constitui talvez o exemplo mais gritante dessa ignorância por conveniência de circunstância. A situação de abandono a que as populações afegãs, sobretudo as mulheres, e de pobreza generalizada a que o Afeganistão está condenado sob o domínio talibã deveria incomodar-nos e suscitar medidas que transcendam a hipocrisia do costume. O clima de regressão civilizacional a que as jovens e mulheres afegãs estão hoje expostas é algo de inqualificável no século XXI de todas as indeterminações, mas também de todas as esperanças dado o avanço do conhecimento disponível e a força que a educação representa do ponto de vista do acesso acrescido a esse conhecimento disponível. O que explica então esta amnésia ocidental seletiva?)
A retirada americana do Afeganistão e a consequente debandada de todas as nações do território que poderiam canalizar ajuda relevante às franjas mais vulneráveis da população afegã nunca foram totalmente explicadas. Joe Biden limitou-se a não questionar uma opção discutível da administração Trump. Imagino que o ocidente tenha pensado que o poder talibã desejaria mostrar ao mundo que, para combater o seu isolamento e conseguir a recuperação de ativos oportunamente congelados pelos EUA, apresentaria sinais de moderação, até para conseguir algum alargamento da sua base social de apoio.
A verdade é que, do ponto de vista dos interesses e aspirações dessas populações mais vulneráveis, se assistiu rigorosamente ao seu oposto, com medidas dirigidas às mulheres e ao universo da educação que representam um dos retrocessos civilizacionais mais violentos que a história alguma vez nos ofereceu. O regresso a um ambiente de trevas e de repressão de avanços centrais num conceito mesmo que rudimentar de desenvolvimento humano demonstrou rapidamente que a prática talibã não tinha mudado e se isso aconteceu foi para pior. O fardo do abandono ocidental é, assim, pesado.
Mas, pode perguntar-se, o que o poder talibã terá oferecido em troca, suscetível de minimizar aos olhos da política ocidental a sensação de regressão civilizacional?
Pelo que vai sendo publicado na imprensa internacional mais especializada, o poder talibã terá feito recuar a onda de corrupção em que o país estava mergulhado já há longo tempo, terá cumprido a promessa de impedir que o território afegão continuasse a ser base de florescimento do terrorismo internacional e terá controlado mais efetivamente a produção e venda de estupefacientes.
A administração americana entende que tais “progressos” não são suficientes para justificar uma maior abertura internacional no relacionamento com o novo poder em Cabul, designadamente o descongelamento dos ativos afegãos.
Esta posição ocidental é cada vez mais discutível, sobretudo porque manter e consolidar o isolamento do Afeganistão constitui o ambiente mais favorável para que o retrocesso civilizacional persista e não dê mostras de flexibilização. Regra geral, os regimes teocráticos quando estão sob medidas de rigoroso isolamento e condenação internacional tendem a fechar-se sobre si próprios e a agravar as dimensões mais violentas do tradicionalismo atávico.
Tal como a história nos tem ensinado, são as forças mais inovadoras e portadoras de futuro nestes países que mais sofrem com o isolamento e a condenação internacional.
E, como será fácil reconhecer, o Afeganistão está muito longe de possuir as bases sociais urbanas e de modernidade que um país como o Irão possui, pelo que não existe força interna suficiente para fazer mudar a perspetiva talibã. Só a partir do exterior isso será possível. Condenar o Afeganistão ao isolamento equivalerá a manter o país nas trevas, sacrificando gerações inteiras que a educação poderia projetar para vidas mais promissoras. Mas a administração Biden não parece convencida.
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