segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

AINDA A CHINA

 


(A realização da 13ª reunião de ministros da Organização Mundial do Comércio (World Trade Organisation) esta semana fez multiplicar na imprensa e na blogosfera económicas os artigos e pontos de vista sobre os fortes desequilíbrios existentes na economia mundial de hoje entre países excedentários e países deficitários. Apetece recordar, como o faz Rana Foroohar no Financial Times, o foco permanente que Keynes prestava a estes desequilíbrios que ele entendia serem prenúncios de forte instabilidade internacional. Por isso, ele batalhou em dois momentos cruciais, primeiro a questão das indemnizações a impor à Alemanha no fim da Primeira Guerra Mundial, em torno das quais ele escreveu em 1919 The Economic Consequences of the Peace e depois no âmbito dos trabalhos que conduziram a Bretton Woods. Os desequilíbrios de hoje são apimentados por várias ocorrências: a evolução desmesurada do peso da China na indústria transformadora mundial, estimada em 31%, a estagnação económica da Alemanha, um dos excedentários clássicos, as ameaças de uma guerra comercial EUA-China e o grande esforço de política industrial da administração Biden. De qualquer modo, grande parte da matéria em discussão gira em torno do momento atual da economia chinesa e da sua estratégia oficial, na qual se destaca a construção de um sistema próprio de articulação da economia chinesa com os países em desenvolvimento.)

Como Michael Pettis o assinala num artigo recente e em vários tweets, uma certa hipocrisia tem prevalecido neste contexto de fortes desequilíbrios no comércio internacional. Os países comercialmente excedentários têm encontrado nos ativos financeiros americanos um refúgio seguro, o que tem por contrapartida que os EUA mantenham défices externos correntes persistentes. O problema é que o mundo das vantagens comparativas está ameaçado pelo facto de grande parte dos países excedentários, China à cabeça, praticar uma política persistente de subsidiação da sua indústria fortemente exportadora. É em parte este contexto que levou a administração Biden a retomar as rédeas da política industrial. Entretanto pelo que se vai sabendo da economia chinesa, o relançamento da sua procura interna tem-se revelado extremamente precário, na sequência dos efeitos retardados da pandemia e sobretudo do mais recente crash imobiliário.

Por outras palavras, a financeirização da economia americana beneficia com a situação pois os desequilíbrios entre a China excedentária e os EUA deficitários no plano externo corrente são regulados através da compra dos ativos financeiros americanos. Estranho mundo de hipocrisia em que se fala de guerra comercial.

Escondido nesta situação está um forte desequilíbrio entre o peso do consumo americano e do chinês: estima-se que os EUA pesarão 27% no consumo mundial, ao passo que o consumo chinês pesará menos de metade, 13%.


 

No plano relativo da comparação entre a China e alguns dos seus parceiros asiáticos também fortemente exportadores, é importante reconhecer que ao contrário destes últimos a evolução dos salários na China tem sido apreciável, como o documenta o gráfico que abre este post. Esse crescimento começa a tornar difícil a associação entre as exportações chinesas e os baixos salários. E, mais importante do que isso, essa subida não tem impedido o forte crescimento do excedente externo de produtos manufaturados (ver gráfico acima). Muito dificilmente esta evolução acontecerá sem a influência aberta e decisiva da subsidiação das autoridades chinesas à sua produção industrial. Esta subsidiação ajuda significativamente a China a organizar os seus universos de influência no comércio internacional, incluindo a atrás referida rede de influência junto das economias em vias de desenvolvimento.

O que Pettis vem alertar, e percebe-se a mensagem atendendo à necessidade de revisão dos princípios que têm orientado o comércio internacional, é que a subsidiação chinesa distorce as vantagens comparativas, representando indiretamente uma transferência das famílias para o setor industrial chinês. Esta observação é tanto mais pertinente quanto mais a condescendência americana e também europeia para com o advento industrial chinês repousou na ideia do enorme potencial de consumo que representaria para as exportações ocidentais o aumento do rendimento das famílias chinesas. Pode assim dizer-se que as autoridades chinesas torpedearam essa esperança afirmando-se progressivamente como um produto excedentário de produtos manufaturados e, ao fazê-lo pela subsidiação da sua indústria, limitaram o aumento do poder de compra do seu consumo interno.

O que temos diante de nós é, assim, uma complexa teia de desequilíbrios no comércio internacional e, obviamente, uma extrema dificuldade em regressar a uma regularidade perdida, a inexistência de excedentes ou défices externos correntes persistentes. E temos por razões indiretas a explicação para que o conceito de política industrial tenha ressurgido. Num mundo em que os excedentes ou défices comerciais persistentes fossem de experiência passageira, a política industrial limitar-se-ia a prosseguir os rumos das vantagens comparativas. Mas não é esse o mundo que predomina hoje. Daí que a política industrial tenha sido desenterrada.

 

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