sábado, 3 de fevereiro de 2024

JÁ CHEGÁMOS AOS AÇORES?

 

(Quis a ironia da política que as autonomias regionais dos Açores e da Madeira estivessem no coração do furacão político que o ano de 2024 vai representar para a democracia em Portugal. Temos de convir que, retirando a matéria de destinos turísticos, as duas autonomias representam pouco para a opinião pública do continente. As duas experiências autonómicas continuam longínquas, perdidas no Atlântico, e a opinião pública do continente tem perceções enviesadas sobre as duas sociedades regionais, apesar do esforço das elites nativas, estando longe de compreender o fenómeno da autonomia regional. Depois de me ter debruçado sobre as nuvens de corrupção que pairam sobre a Madeira, tenho hoje a oportunidade de me concentrar sobre os Açores, não felizmente por questões de justiça, mas pelo facto de amanhã as eleições regionais dos Açores representarem uma espécie de prólogo de 10 de março, sobretudo pelo que elas poderão antecipar de comportamento do PSD. O meu registo é algo de semelhante ao que utilizei a propósito do post relativo à Madeira. Tenho experiência de trabalho na Região Autónoma dos Açores e é sobretudo em torno dessa experiência que tenho acumulado conhecimento sobre a Região.)

Tal como o fiz a propósito da Madeira, começo, como não podia deixar de ser, com algumas reflexões para afastar quais quer conflitos de interesses que possam estar subjacentes à minha reflexão.

A minha experiência de trabalho com o Governo Regional liderado pelo PSD de Bolieiro é limitada e circunscreveu-se ao trabalho de avaliação do Programa Regional FEDER e FSE 2014-2020 e a Avaliação ex-ante do programa para 2021-2027. Em contrapartida, a minha experiência de trabalho com os governos liderados pelo PS, ainda com Carlos César ao leme e depois com Vasco Cordeiro, foi longa e diversificada envolvendo sobretudo trabalho de avaliação e de apoio às políticas de emprego e formação profissional, quando as mesmas ainda tinham o dedo de um dos grandes especialistas nacionais dessas políticas, o Dr. Rui Bettencourt[1] que liderou durante largo tempo a Direção Regional que se ocupava destas matérias.

Por isso, se quisermos ser rigorosos em tudo que seja análise crítica da sociedade açoriana, temos de sopesar bem a permanência do consulado do PS na Região, embora essa liderança tenha sucedido a uma longa permanência do PSD no poder, com relevo para as lideranças de Mota Amaral.

E o que me ocorre imediatamente referir é que a sociedade açoriana já deveria revelar manifestações de uma maior modernidade e urbanidade do que aquela que é possível reconhecer quando tomamos contacto mais aprofundado com a Região. É um facto que as características de arquipélago e de dupla periferia, a que lhe é imposta pela sua localização no Atlântico e a que decorre da fragmentação territorial que o arquipélago representa, constituem fatores fortemente inibidores dessa mudança. Os Açores não têm o cosmopolitismo de um Funchal e, obviamente, nem Ponta Delgada, nem a Horta estão ainda a alguns anos de evolução nesse sentido, podendo até falar-se de um certo recuo observado nos últimos anos, o que não deixa de ser paradoxal quando nos apercebemos que lenta mas sustentadamente o turismo açoriano vai avançando e as low-cost reduziram bastante o isolamento da Região.

Lembro-me que na altura em que comecei a trabalhar na Região, algumas conversas com quadros locais da administração regional, com relevo para o já falecido Carlos Curvelo, licenciado pelo ISEG em Lisboa mas que passara pela Faculdade de Economia do Porto e tivera trabalho associativo de relevo, me levaram a ler tudo quanto apanhei para tentar compreender os meandros culturais da insularidade. Devorei na altura os escritos  de Nemésio, de Medeiros Ferreira, de Onésimo Teotónio Almeida, professor radicado nos EUA, João de Melo e a música de Zeca Medeiros, entre outros, para tentar compreender melhor o que é que insularidade significava e de que modo por essa via poderia compreender melhor o modo de atuar da administração regional e das suas principais elites.

Passados estes anos, tenho de reconhecer que o longo consulado do PS na Região teve um reduzido valor acrescentado na criação de uma sociedade açoriana mais urbana e com sinais de maior modernidade, ao nível dos comportamentos. Não sei se poderia ter sido diferente, repito, atendendo à fragmentação territorial que o arquipélago determina e ao esvaziamento demográfico de muitas das suas ilhas. Mas o que me impressiona é o facto dos seus principais redutos urbanos com maior potencial de internacionalização cosmopolita, Ponta Delgada e Horta, não darem mostras da irreverência urbana que já evidenciaram no passado. Estagnação ou mesmo retrocesso dessa irreverência e dinâmica urbana constituem um mau sinal e não valorizam muito a influência do PS no passado recente.

Esta matéria é relevante no contexto político das eleições de amanhã. Creio que uma maior urbanidade e modernidade daria o regresso do PS ao poder e não a possibilidade de reedição da aproximação de governo entre o PSD e o Chega. Penso aliás que sem essa maior urbanidade e modernidade dificilmente a Região dará o salto para um outro modelo produtivo, podendo por essa via atrair alguns novos residentes à Região.

Sei bem que há muita gente que não convive bem com a ideia de insularidade e fragmentação territorial perdida no Atlântico longínquo. Uma das histórias que o Carlos Curvelo me contava nos meus contactos iniciais na Terceira, ilha em que a estrutura de planeamento regional estava e continua implantada, era a de uma juíza do continente que viajava sem cessar ao longo da ilha para ter uma outra perceção de distância. A tal juíza acabou por não se habituar à insularidade e regressou ao continente.

De qualquer modo, amanhã ao início da noite os Açores evidenciarão uma centralidade política que não é habitual e, vejam bem, a grande incógnita que paira no ar é se Montenegro vai ou não arrepender-se de viver in loco a noite eleitoral sem convite expresso do PSD regional.

Onde nós chegámos! Não à Madeira mas aos Açores. Isto não augura nada de bom para o 10 de março.



[1] Veja-se nesse sentido, Rui Bettencourt, Políticas para a Empregabilidade (2014), publicado pela Actual Editora.

 

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