terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

POBREZA E EDUCAÇÃO

 


(Não acredito que seja por simples coincidência. Iniciada que está a campanha eleitoral, o que é a mesma coisa que dizer que efervescência e emoção não vão faltar, surgem na opinião pública portuguesa dois documentos cuja discussão exigiria tempos mais calmos do que os de uma campanha eleitoral. Estou a referir-me à publicação pelo Conselho Nacional de Educação do Estado da Educação de 2022 e a um estudo da Cáritas Portuguesa hoje de manhã apresentado em conferência no Centro Regional do Porto da Universidade Católica, centrado na subestimação do fenómeno da pobreza absoluta em que as estatísticas nacionais e comunitárias estarão a incorrer. A relevância das duas reflexões é por demais evidente para justificar um ambiente de discussão mais estruturado do que é proporcionado por uma campanha eleitoral de conflitualidade acesa como a que estamos a viver, com uma profunda alteração do espectro partidário que resultará seguramente do dia 10 de março de 2024. Ressalvando que os temas merecerão visita futura, aqui estão algumas reflexões sobre os mesmos.)

No que respeita ao Estado da Educação 2022, pelo que pude apreender, o relatório tem a virtude de se concentrar não propriamente em novidades, mas em elementos de análise que já mereceram referências de vários especialistas do setor e da própria comunidade educativa em geral. Isto significa que na vertigem de informação em que estamos todos mergulhados não teremos dado a devida sequência em matéria de debate e medidas necessárias a essas questões, o que só por si concede importância à insistência do CNE.

Um dos temas aflorado pelo relatório representa um verdadeiro mistério. O sistema educativo e a política pública que o deveria manifestaram uma incompreensível incapacidade de antecipar com planeamento adequado uma questão estrutural que pode minar por muitos anos a sustentabilidade do sistema. Estou a referir-me à incapacidade de gerir atempada e coerentemente o envelhecimento progressivo do corpo docente e a consequente falta ou rigidez de distribuição no território de professores. Bem sei que em algumas regiões, como o Norte o ilustra na perfeição, o fenómeno do declínio demográfico se acelerou vertiginosamente em duas décadas. Ainda há dias discutia com colegas de trabalho esta rapidíssima transição de um período em que se falava da exemplaridade demográfica a norte com níveis de juventude dos mais elevados na Europa para um outro em que, rapidamente, se conta pelos dedos de uma só mão o número de municípios que na região apresentam crescimento natural positivo. Bem sei também que o estado de desmotivação e crença que atravessa o grupo social dos professores ter-se-á repercutido num número mais elevado de reformas precoces, complicando o que já era complexo. Mas, não deixando de compreender estes fatores de aceleração de um problema que era estrutural e antecipável, estamos perante um problema estrutural que se sobrepõe a todos os outros temas que têm agitado a profissão e a sua conflituosa relação com o Governo. De facto, uma coisa é discutir a questão da recuperação do tempo de serviço como a reparação de uma injustiça gritante, outra coisa é discuti-la no quadro de uma situação estrutural em que a falta de professores tem de ser resolvida, sob pena da sustentabilidade do sistema estar ameaçada. O Ministro João Costa, em meu entender, nunca compreendeu a mudança de perfil desta questão e espanta-me que a estrutura de planeamento do Ministério não o tivesse antecipado de forma atempada.

Um outro tema aflorado no relatório prende-se com as notórias dificuldades de aprendizagem de uma massa significativa de alunos, com repercussões na capacidade de raciocínio e de resolução de problemas e de abstração. A matéria não é de abordagem simples já que mexe com toda a matéria da inovação pedagógica. Intuo que se trata de uma matéria com grande complexidade – como iniciar jovens alunos pelos mundos da abstração de modo aliciante e apelativo? Imagino que, nas condições atuais enfrentadas pela escola pública, os professores enfrentem desafios ciclópicos em turmas tão diversas do ponto de vista socioeconómico, buscando soluções para integrar todos os perfis, impedindo a desistência e estagnação dos mais carenciados de apoio pedagógico e não sacrificando os mais capazes ao desenvolvimento a que têm direito. Por outro lado, não tenho ouvido falar de formação específica de professores para o ensino profissional, cujos problemas pedagógicos são suficientemente específicos para não serem ignorados.

Finalmente, o relatório retoma um tema já aflorado em estados da educação anteriores, que se prende com a necessidade de reforma estrutural dos diferentes ciclos de ensino, designadamente a velha questão dos 5º e 6º anos cuja lógica e racional continua a não estar claramente definido. De facto, não se entende a razão destes dois anos estarem desligados dos quatro primeiros (a minha instrução primária), sobretudo num quadro em que a escolaridade obrigatória dos 12 anos parece estabilizada, seja pela via dos científico-humanísticos ou do ensino profissional. Nesta matéria, o programa eleitoral da AD tem alguma vantagem pois o refere explicitamente.


O estudo da Cáritas, do qual hoje de manhã estava apenas acessível a introdução, traz a experiência de terreno da organização para uma matéria relevante e à qual as políticas sociais não podem deixar de dar resposta. Estaremos a medir com rigor o fenómeno da pobreza absoluta e da privação material que a sustenta e reproduz? Serão os problemas de medida de natureza técnica ou não estaremos a cobrir toda a fenomenologia da pobreza? O relatório da Cáritas inclina-se para esta segunda hipótese, quando destaca que a fonte de toda a informação oficial (nacional do INE e europeia do EUROSTAT) é a de um inquérito às famílias. Segundo o relatório, as situações de pobreza que não correspondem a residências habituais (pessoas em situação de sem abrigo, reclusos, residentes em alojamentos temporários) estarão a descoberto e não será difícil imaginar que entre estas situações estarão alojados fenómenos de pobreza de magnitude que estará em crescimento.

O tema exige um debate muito amplo, envolvendo questões em que a política social em Portugal é deficiente, como, por exemplo, a da integração (multidisciplinar e administrativa) entre diferentes serviços, a coordenação e integração territorial de políticas (sobretudo a relação local-nacional) e o papel da sociedade civil organizada para complementar a intervenção pública.

Não é difícil concluir que ambos os temas deveriam ter tido uma outra divulgação em contexto pré-eleitoral, com outro tempo de maturação e convite ao debate político. Isso não aconteceu, pelo que estarão de reserva para debates futuros.

 

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